Julgamento

Perito do Carandiru afirma que PM modificou cena do crime

Osvaldo Negrini reafirmou que não houve confronto e que ação dos policiais durante invasão do pavilhão 9 foi violenta e desnecessária

Adriano Lima/Brazil Photo Press/Folhapress

Na nova leva, 26 policiais são levados a julgamento pela morte de 73 detentos

São Paulo – “Morticínio” e “extremamente violento e desnecessário”. Assim o perito criminal Osvaldo Negrini definiu a ação dos policiais militares que atuaram no terceiro pavimento do pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, em entrevista após seu depoimento na segunda etapa do julgamento do caso, que começou hoje (29) no Fórum Criminal da Barra Funda, região central de São Paulo.

Vinte e seis policiais são julgados por 73 mortes. Negrini, chamado pela acusação, foi a primeira pessoa a ser ouvida nesta segunda etapa do julgamento. “Não há nenhuma prova técnica de que houve disparo contra os policiais. Não tem nenhum caso em que eu possa afirmar que o tiro foi disparado no sentido contrário. Não se pode dizer em legítima defesa”, disse. “Se houvesse confronto, haveria vestígios nas paredes opostas (a das celas). No terceiro pavimento, tinha só dois disparos no corredor, próximos à porta da cela, e indicam que foram dados de frente para a cela”, afirmou, durante o júri. 

Negrini reiterou as declarações feitas durante a primeira etapa do julgamento, em abril, quando 23 policiais foram condenados por terem colaborado para o resultado dos fatos no primeiro pavimento, onde 13 pessoas foram assassinadas.

Para o perito, hoje aposentado, houve intenção deliberada dos policiais de matar os presos, muitos deles, alvejados ajoelhados ou deitados dentro da cela, o que foi evidenciado em função da presença de tiros a menos de 40 centímetros do chão.

Durante quase duas horas, os promotores Eduardo Olavo Canto Neto e Fernando Pereira da Silva conduziram a testemunha para reafirmar informações contidas em seu laudo, como o fato de que não houve nenhum tiro dado de dentro para fora das celas, o que indicaria a existência de confronto.

A advogada de defesa dos 27 policiais fez perguntas durante 20 minutos. Ela tentou desqualificar o laudo de Negrini e insistiu na tese de que não é possível provar que os presos mortos estavam no terceiro pavimento, já que os corpos foram levados para o andar de baixo, além de, baseado em um parecer, afirmar que havia ocorrido disparos de dentro para fora das celas. Negrini tachou a informação como “falsa”. Um parecer é dado por um técnico que se baseia no laudo oficial e emite informações. Para Negrini, o parecer foi pedido pelo no crime, o governo do estado.

Negrini afirmou que houve um “recrudescimento da batalha” no terceiro pavimento, onde a maioria dos presos mortos morava e onde foram encontrados mais resquícios de disparos.

O perito foi chamado ao Carandiru no dia 2 de outubro de 1992 por volta das 19 horas do dia 2. Em função da falta de luz, não pôde realizar a perícia em todo o prédio. Ele relatou que, ao entrar no primeiro pavimento, viu um “rio de sangue” descer pelas escadas e 90 corpos empilhados. Os corpos foram removidos a mando de policiais por presos sobreviventes. Apenas no dia 9, quando o pavilhão já havia sido lavado, ele pôde entrar. Para Negrini, houve intenção deliberada dos policiais de modificar a cena dos fatos para dificultar a perícia.

“Não só houve tentativa como houve alteração do local onde morreram. O fato simplesmente de todos os cadáveres terem sido retirados e juntados em um único local mostra que não se queria relacionar a morte com a posição do cadáver. Provavelmente a cela em que ele morava”, disse.

A acusação chamou 11 testemunhas, mas dispensou sete. Negrini foi a única  ouvida presencialmente. A promotoria resolveu usar vídeos com os depoimentos prestados na primeira etapa do julgamento.

O primeiro foi o de  Antonio Carlos Dias. Na época ele estava preso no Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru havia um mês quando ocorreu o massacre. Em abril, ele prestou o primeiro depoimento do julgamento e, a seu pedido, os réus não permaneceram presentes no plenário.

Seu testemunho colaborou para montar a tese da acusação de que o episódio na Casa de Detenção era uma “corriqueira” briga de presos e não chegava a ser uma rebelião. E que a reação foi desproporcional, já que, segundo Dias, presos rendidos que ajudavam a remover corpos teriam sido agredidos e mortos.

Ele afirmou que quem escorregasse ou caísse no chão ensanguentado era morto pelos policiais. “Qualquer pessoa que sobreviveu àquilo se emocionaria”, disse, recordando ter sofrido agressões.

A testemunha também recordou ter visto da cela na qual estava um caminhão com uma “pilha de corpos”, o que o emocionou. “Acredito que no mínimo o dobro do que eles falavam. Quem não tinha visita era indigente, foi descartado como lixo”, disse à época. Oficialmente, 111 pessoas morreram naquele dia no Carandiru e nunca foi possível comprovar os boatos de que corpos foram ocultados.

Dias afirmou que preferiria não depor e que foi apenas por obrigação. Ele garante não ter ressentimento contra os policiais, embora conclua que a corporação tem sérios problemas. “Pelo que a gente vê, a maioria é má. Tem uma minoria só que é boa.”

Marco Antônio de Moura, que também estava preso na ocasião, afirmou que estava abaixado no fundo de uma cela com outras 30 pessoas quando um policial colocou uma arma por uma pequena abertura da porta e disparou rajadas de metralhadora. Uma bala acertou seu pé. Ferido, ele se fingiu de morto e só se apresentou para receber atendimento depois que “autoridades” chegaram à Casa de Detenção, o que conteve a violência. Antes disso, garante, tiros foram disparados de helicóptero contra os presos, o que ocasionou a morte daqueles que subiram para o telhado.

Ele garantiu diante do juiz e dos jurados que durante a operação de rescaldo do prédio, depois que o pavilhão já havia sido dominado completamente pelos policiais, foi formado um corredor humano por onde os presos tinham que passar e, mesmo sem esboçar reação, eram mortos aleatoriamente. Moura também afirmou que os policiais gritavam: “Deus cria. A Rota mata”. “Eu acredito que se um preso tivesse uma arma, pelo menos um policial tinha pelo menos um arranhão”, afirmou.

O outro depoimento escolhido pela promotoria para ser reproduzido em vídeo é o do então diretor de disciplina do Carandiru, Moacir Santos, o quarto a testemunhar na primeira etapa do julgamento. Ele afirmou na ocasião que a ação dos policiais foi uma “rebeldia”, que sequer respeitou o comando do coronel Ubiratan Guimarães, responsável pela operação. Ubiratan foi condenado em 2001 a 632 anos de prisão pelo massacre do Carandiru, mas em 2006 a pena foi revista meses antes de ele morrer e o coronel não cumpriu sequer um dia da sentença.

Segundo depoimento de Santos, ele esteve dentro do Pavilhão 9 tentando convencer os presos a acabarem com o conflito, mas, após perceber que não seria possível, disparou o alarme que indicava a necessidade de intervenção externa. Apesar de ser favorável à invasão, disse que considerou um erro a utilização da Rota em vez da Tropa de Choque, grupamento treinado para o tipo de operação. A Rota atuou no segundo e terceiro pavimentos, locais onde aconteceram mais da metade das 111 mortes.

O ex-diretor da casa de detenção afirmou não acreditar que as 13 armas apontadas pela polícia como tendo sido usadas pelos presos pertencessem de fato a eles. “Se eles tivessem armas, teriam usado”, afirmou. “Não precisa ser estrategista para saber que colocar a Rota lá dentro não ia dar certo”, disse.

Santos contou que fez o relatório de todos os corpos e que apenas oito tinham ferimentos de arma branca, e apenas esses poderiam ter sido feridos na briga interna. “O restante foi morto por bala”, garantiu.