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Na fila da Câmara, PEC 90 pode abrir caminho para gratuidade do transporte público no país

Proposta apresentada por Luiza Erundina (PSB-SP) inclui transporte entre os direitos sociais na Constituição. Para especialista, passe livre dependeria de lei específica

Renato Araújo/ABr

MPL entende que o transporte público é um direito que permite ao cidadão acessar outros direitos

São Paulo – Pressionado pela chamada “voz das ruas”, o Congresso está fazendo caminhar, nesta semana, uma série de projetos até então empacados nas comissões da Câmara e do Senado. Um deles é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 90, apresentada em 2011 pela deputada Luiza Erundina (PSB-SP), e que inclui o transporte público como um dos direitos sociais reconhecidos pelo artigo 6º da Constituição.

Após mais de dois anos de paralisia, a PEC 90 foi aprovada na terça-feira (25) pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, da qual Erundina faz parte. Agora deverá ser analisada por uma comissão especial, ainda a ser criada, e só depois, se receber parecer favorável, seguirá para votação em dois turnos no plenário da Casa.

“Precisaremos de 305 votos a favor na Câmara para que o texto siga para o Senado, onde passará por mais duas votações”, explica a deputada, que conversou com a RBA por telefone. “Há um caminho longo pela frente. O rito legislativo é exigente, porque se trata de uma mudança constitucional, mas avalio que o momento é favorável. Com esta pressão da sociedade, as chances de a PEC 90 ser aprovada cresceu muito.”

A inclusão do transporte público no rol dos direitos sociais brasileiros é uma reivindicação antiga do Movimento Passe Livre (MPL). A entidade foi uma das principais responsáveis pelas recentes manifestações que, iniciadas em São Paulo, acabaram se espalhando por todo país. A aprovação da PEC 90 é inclusive mencionada na carta aberta que o grupo enviou à presidenta Dilma Rousseff na última segunda-feira (24), horas antes de seus membros serem recebidos no Planalto.

“O transporte público é um direito que dá acesso a outros direitos”, justifica o estudante Caio Martins, 19 anos, militante do MPL. “Entendemos que seu reconhecimento formal como direito social na Constituição abre espaço para o estabelecimento da tarifa zero nas cidades brasileiras.”

Direitos

Desde que foi redigido, em 1988, o artigo 6° da Carta já passou por duas retificações, em 2000 e 2010. Atualmente, o texto determina como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.

“Não há razão para não incluir também o transporte público”, defende Martins. “É o transporte que garante o acesso das pessoas à cidade. De que adianta termos uma educação pública, gratuita e de qualidade se as pessoas não têm condições de chegar até à escola?” Segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (ANTU), cerca de 37 milhões de brasileiros se veem limitados em seu deslocamento devido ao alto valor das tarifas de ônibus, trens e metrô no país. O número representa 20% da população.

Caio Martins, do MPL, lembra que a PEC 90 foi apresentada à Câmara em 2011 como resultado da última grande mobilização pela redução do preço da passagem do transporte público encabeçada pelo movimento em São Paulo – não por acaso, foi levada à Casa por uma parlamentar do estado.

Na justificativa do projeto, Luiza Erundina argumenta que o transporte público “cumpre função social vital, uma vez que o maior ou menor acesso aos meios de transporte pode tornar-se determinante à própria emancipação social e o bem-estar daqueles segmentos que não possuem meios próprios de locomoção”.

“A PEC 90 vai criar um instrumento concreto para garantir esse direito”, explica Luiza Erundina. “Não vai depender mais dos governantes reconhecer ou não o transporte como direito. Uma vez expresso na Constituição, o Estado tem dever de elaborar políticas públicas para atendê-lo. E, caso não seja atendido, poderemos recorrer à justiça, ao Ministério Público, para que seja garantido.”

A deputada acredita que sua proposta demorou tanto para começar a caminhar pela Câmara devido à “insensibilidade” dos parlamentares. “É um Congresso distante da realidade do povo”, atesta. “A correlação de forças na Casa é desfavorável a temas como a PEC 90. Existe uma falta de atenção dos representantes do povo aos problemas do povo. Foi preciso que as pessoas fossem à rua, puxados pelos jovens, para que os congressistas enxergassem que havia muitos problemas na vida das pessoas.”

Desdobramentos

“Na realidade, o transporte já é um direito social, ainda que não de nível constitucional”, interpreta o procurador geral do estado de São Paulo, Elival da Silva Ramos, professor de Direito Constitucional da USP. “A Constituição prevê que, além dos direitos fundamentais, existem outros. O direito do transporte, pela dimensão que tem, pela relação que possui com o direito de ir e vir, já poderia ser considerado dessa forma.”

O fato de ser incluído no artigo 6º, porém, representaria um “reconhecimento explícito” desse direito. “Passa a ter uma indicação do legislador de que possui uma grande importância”, continua Elival, fazendo a ressalva de que a transformação do transporte público em direito social não guarda relação direta com a gratuidade do serviço. “A previdência, por exemplo, tem fontes de custeio. A própria alimentação, que hoje está lá, não é gratuita. A habitação não é gratuita.”

Para o procurador, tudo depende de como o Estado escolhe estruturar a garantia de cada direito social. No caso da educação, por exemplo, ficou estabelecido após decisão judicial que o poder público é obrigado a oferecer vagas gratuitas no ensino fundamental, médio e superior. Com a saúde, ocorre algo parecido. “O Sistema Único de Saúde (SUS) poderia ter sido estruturado de outra maneira, mas a lei específica o criou com conceito de gratuidade.”

Elival acredita que incluir o transporte público no artigo 6º é importante como pauta política. “Uma possível gratuidade dependeria de lei específica”, afirma, citando um exemplo em que a justiça poderia ser acionada para garantir o direito dos cidadãos. “Se vier uma lei dizendo que o transporte em São Paulo é gratuito, aí pode-se entrar com uma ação.” É o que já acontece, em alguns casos, com saúde e educação.

“O Ministério Público pede vagas obrigatórias para o ensino fundamental e o Supremo Tribunal Federal (STF) estendeu esse direito para creches também. A partir de então tem havido uma pressão para que as creches sejam construídas”, ilustra. “Às vezes pode acontecer que ações propostas por razões políticas sejam aceitas.”

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