Para militantes, proposta de Alckmin para alteração do ECA é ‘lamentável’

Projeto apresentado à Câmara dos Deputados pelo governador 'foge do real enfrentamento da violência e seria apenas reedição de outras ações de igual teor propostas por Alckmin', dizem ativistas ouvidos pela Rede Brasil Atual

Internos da Fundação Casa. Para especialistas, Estado deve promover a juventude, em vez de criar novos castigos (© Ricardo Nogueira/Folhapress)

São Paulo – Defensores dos direitos da criança e do adolescente consideram ineficiente e retrógrada a proposta do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), de alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, ampliando o tempo de internação de adolescentes em situação de conflito com a lei para até oito anos. O projeto prevê também a criação de unidades de atendimento diferenciado para casos considerados graves ou para jovens que atinjam 18 anos em quanto cumprem a pena.

O documento foi apresentado terça-feira (16), na Câmara dos Deputados, onde recebeu a definição de Projeto de Lei 5.385/2013. Segundo os especialistas, as medidas defendidas não são novas e representam um afastamento do enfrentamento efetivo da violência.

A proposta apresentada por Alckmin altera artigos do ECA, do Código Penal e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), propondo punição mais severa aos jovens que cometem atos infracionais graves, como homicídio, latrocínio, estupro ou sequestro. Além disso, estabelece o Regime Especial de Atendimento, para casos de reincidência, participação em rebeliões, adolescentes que forem considerados casos graves ou que completarem 18 anos e ainda tiverem internação a cumprir. Esse regime, propõe o governador, deve ser instituído em unidades específicas, com vigilância reforçada, mas não em cadeias comuns.

Para a coordenadora da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Mônica Brito, a proposta de redução da maioridade penal está associada à criminalização da pobreza. “Os gestores não têm interesse em promover a juventude, em efetuar as políticas previstas na lei. Então se criam meios de jogar para o aparelho carcerário e punitivo os grupos sociais mais vulneráveis. O encarceramento parece ser a única saída saída no Brasil para essas questões. No entanto, até hoje, sem qualquer medida que resolva efetivamente o problema”, analisa.

As discussões sobre a redução da maioridade penal, e os projetos apresentados nesse sentido, têm se pautado pela argumentação de que o adolescente infrator não é punido. Mônica considera isso um mito. “Está se confundindo inimputabilidade com impunidade. Criticam o estatuto por não ter punição. O que ocorre é que o jovem não sofre pena porque o objetivo da ação é de educação, pois entende-se que o menor é um sujeito em formação. As medidas socioeducativas devem dar a ele condições de escolher o melhor caminho, de aprender. E são até três anos de internação, fora do convívio social, o que não é pouco”, explica.

Além disso, a coordenadora lembra que o Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 da Organização das Nações Unidas (ONU), o que limitaria as condições de o país reduzir a maioridade penal, por infringir as normas de tal convenção.

A conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) Miriam Maria José analisa que a legislação já é eficiente, e o que falta é o Estado cumpri-la. “A lei responde bem quanto à responsabilização do adolescente, já a partir dos 12 anos. Também quanto às ações preventivas para evitar que o jovem cometa atos infracionais. O que a gente precisa é que o Estado cumpra as proposições estabelecidas no Estatuto, a Constituição e invista em políticas públicas e no fortalecimento das famílias”, afirma. Maria acrescenta que o Estado também deve possibilitar a reabilitação dos jovens internados por meio de ações ligadas ao trabalho e ao estudo.

Para o especialista em segurança pública e ex-conselheiro do Conanda, Ariel de Castro Alves, a proposta é oportunista e demagógica. “Não é a primeira vez que, após casos de grande repercussão nacional, o governador se manifesta dessa forma. Em 2003, 2005 e no ano passado ele já fez propostas parecidas. Além disso, a separação por idade e por tipo de crime já está definida no ECA, bem como a internação especial de jovens com problemas mentais. Mesmo a punição para adultos que praticam crimes acompanhados com adolescentes já está estabelecida no estatuto” –  a questão é tratada no artigo 244-B do ECA.

Além disso, Alves pondera que o projeto, embora não proponha a redução da maioridade penal, pode ser questionado constitucionalmente por propor a internação de até oito anos. “O artigo 227 da Constituição é muito claro quando fala da brevidade da internação. É preciso considerar que é um sujeito em formação, que poderá passar boa parte da vida em privação de liberdade – que deve ser um recurso de uso em apenas em casos excepcionais. Você não pode colocar um jovem por quase metade do tempo de vida dele, se ele tiver 16 anos, por exemplo, em situação de internação. Isso pode ser questionado, por ser inconstitucional”, considera.

Na terça-feira (16), em audiência na comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, a presidente da Fundação Casa, Berenice Giannella, afirmou que a proposta já vinha sendo discutida no governo antes da reação ao crime ocorrido recentemente na zona leste da capital. 

Na mesma audiência foram apresentados dados que demonstram que a alardeada “situação extrema” a que chegaram os jovens não é bem assim. De acordo com a Fundação Casa, dos 8.462 adolescentes que cumprem alguma medida no estado de São Paulo somente 0,9% cometeram ato com violência contra a pessoa. O número de reincidência também estaria caindo. Dos jovens que deram entrada na fundação em 2006, 29% reincidiram em ato infracional. Em 2012, o índice caiu para 13,5%. Mesmo com o número de internações tendo subido, de 4.733 em 2006, para 6.219 em 2012, o motivo pode não ser exatamente um aumento da criminalidade entre os jovens.

A presidente da fundação afirmou que existe um problema com a esfera judicial, sobretudo com os juízes do interior, que determinam internação provisória de 45 dias, com o objetivo de dar um “sustinho” nos adolescentes, que algumas vezes foram apreendidos como usuários de drogas, para afastá-los do crime. Considerando que a internação deve ser o último recurso e que as unidades já sofrem de alguma superlotação no estado, a prática pode estar causando o efeito contrário ao esperado, além de inchar as estatísticas de internação, causando a falsa impressão de estar aumentando a violência entre os jovens.

Um outro problema, no projeto apresentado por Alckmin, se dá sobre as circunstâncias de internação desses jovens. Hoje a maior parte das unidades de atendimento está em condições precárias, e há informações de alguns estados que mantêm adolescentes em cadeias comuns por não terem estrutura adequada. Alves cita como exemplos Rondônia, Rio Grande do Norte e Pará, como lugares onde a situação é mais difícil. “Isso é uma preocupação. Os jovens ficariam mais tempo internados sob péssimas condições de atendimento. Visitei lugares em que a condição dos adolescentes internados é deprimente”, afirma.

Miriam avalia que o sistema socioeducativo do país não tem condições de arcar com a mudança proposta, nem mesmo de prover adequada inserção social dos adolescentes. “É um sistema falido. Muitas unidades não deixam nada a desejar a campos de concentração, com casos de morte dentro de centros de internação. Em muitos lugares não há qualquer iniciativa de educação, lazer, cultura, saúde, formação profissional. Como vamos recuperar esses adolescentes se você não dá a eles o mínimo de proteção ou políticas públicas para que encaminhem outro projeto de vida?”, questiona.

Outra via

O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, aprovado no ano passado, que estabelece diretrizes para aplicação, acompanhamento e avaliação da eficácia das medidas socioeducativas em todo o país, ainda carece de efetivação, o que se fará com a formação dos conselhos estaduais e municipais, para que a política seja implementada em estados e municípios. Esses conselhos serão fiscalizados pelo Conanda.

Na terça-feira (16), o deputado estadual e presidente da comissão de direitos de humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, Adriano Diogo (PT), afirmou que o projeto do governador é uma suavização da redução da maioridade penal. “É uma versão ‘adocicada’ da redução. Como ele não encontrou respaldo da sociedade para propor a redução, que é a verdadeira intenção, ele cria uma versão juridicamente viável. Porque na realidade vão se criar instituições prisionais específicas para os jovens enquadrados nesses crimes”, ponderou.

Na manhã de ontem (17), a Comissão de Constituição, Justiça e Defesa da Cidadania da Câmara dos Deputados deu um passo no sentido de não aceitar a redução da maioridade penal e rejeitou a inclusão na pauta do Projeto de Decreto Legislativo 1002/03, que convoca um plebiscito para consultar a população sobre a redução ou não da maioridade penal, do ex-deputado Robson Tuma. Os partidos PT, PCdoB, PSDB e PSB fizeram obstrução à votação do projeto.

A retomada das discussões sobre a redução da maioridade penal e de projetos que endureçam as medidas aplicadas aos adolescentes foi motivada pelo assassinato do estudante Victor Hugo Deppman, de 19 anos, morto por um adolescente de 17 anos, em um assalto na porta de casa, no Belém, zona leste, no último dia 9.

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