‘Lei da Anistia não nos ajuda nem nos atrapalha’, diz coordenador da CNV

Afirmação de Paulo Sérgio Pinheiro foi feita hoje (1º) no lançamento do acervo digital do Deops. Governador Geraldo Alckmin não respondeu ao ser questionado sobre validade da lei, de 1979

Pinheiro afirmou que pretende desmascarar os responsáveis por violações, mas lembrou que a comissão não é um tribunal (Foto: Marcelo Camargo. Agência Brasil)

São Paulo – O coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Paulo Sérgio Pinheiro, disse hoje (1º), em cerimônia do lançamento do acervo digital do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo, no Aquivo Público de São Paulo, zona norte da capital, que a Lei da Anistia, de 1979, não ajuda nem atrapalha os trabalhos da CNV.

A declaração veio após uma intervenção do Levante Popular da Juventude e do Comitê pela Memória, Verdade e Justiça de São Paulo, que colocavam uma série de reivindicações para os trabalhos da comissão. A mais aclamada foi a revisão da Lei da Anistia, de 1979, que garante anistia política aos militantes de esquerda e também aos agentes da repressão do Estado. “Somos uma comissão do Estado, e não o Estado em si”, disse ele ao comentar as competências.

“Essa sentença não é da Comissão da Verdade, está no nosso trabalho indicar os autores dos crimes, e é claro que os queremos desmascarados.” O coordenador do grupo também afirmou que nenhuma comissão que se propõe a apurar violações de direitos humanos em regimes de exceção tem a competência para julgar. “Nenhuma comissão é tribunal, nenhuma comissão é Ministério Público.”

O governador Geraldo Alckmin (PSDB), também presente ao evento, ao ser questionado por jornalistas sobre a validade da Lei da Anistia, não respondeu se era favorável ou não a uma possível revisão, mas falou sobre a comissão da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, que indeniza familiares das vítimas da repressão “analisando caso a caso”. “Este é um compromisso de São Paulo. A política de direitos humanos é política de Estado, não é de governos nem de partidos”, disse.

A Comissão Estadual de Ex-Presos Políticos foi formada em decorrência da Lei Estadual 10.726/2001, a partir do reconhecimento de que o Estado agiu de modo criminoso contra os cidadãos durante a ditadura (1964-1985). Os relatores da comissão deliberam sobre a concessão de indenizações, divididas em dois valores: R$ 22 mil, em caso de prisão e/ou tortura; e R$ 39 mil, em caso de sequelas permanentes ou morte.

Sobre a declaração do governador, o presidente do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe) e assessor da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, Ivan Seixas, afirmou que o governador não respondeu à pergunta feita pelos jornalistas. “O que ele fala é outra coisa. Ele foi perguntado sobre a Lei de Anistia, para processar os torturadores, e ele respondeu sobre reparação.”

“A Lei de Anistia foi fruto de uma imposição da ditadura. Não houve acordo, passou um projeto que não era o da oposição, também não era o da ditadura, mas não foi o mais adequado”, disse Seixas.

Paulo Sérgio Pinheiro destacou o papel decisório que o relatório final dos trabalhos do grupo, que deve ser finalizado em maio de 2014, terá para que novas interpretações do passado, inclusive das leis instituídas na ditadura, surjam no debate político-social do país.

Outras reivindicações dos manifestantes, como a prorrogação dos trabalhos da comissão e a divulgação de relatórios parciais, que garantiriam maior transparência às informações apuradas, foram rebatidas por Pinheiro. “Eu era a favor de só um ano de trabalhos, mas a maioria quis dois. Essa decisão não cabe a nós da comissão, mas sim à presidenta da República.”

Sobre a transparência das informações, ele afirmou que as audiências públicas realizadas pela CNV, assim como as informações dadas à imprensa, cumprem o papel de garantir participação da população nos debates, mas que nem todos os depoimentos e audiências podem ser abertos ou divulgados ao público. “Trabalhamos com uma espécie de arqueologia. Da mesma maneira que investigações criminais, nem tudo pode ser público.”

Digitalização

O Arquivo Público do Estado de São Paulo já tem cerca de 1 milhão de páginas de documentos do Deops digitalizadas. Hoje, 274.105 fichas e 12.874 prontuários, representando cerca de 10% de todo o material, passaram a estar disponíveis para consulta livre e gratuita no site arquivoestado.sp.gov.br.

O trabalho, resultado da parceria entre a Associação dos Amigos do Arquivo Público de São Paulo e o projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, foi classificado como parte fundamental de uma tentativa de reparação com as vítimas do Estado na ditadura. “Devemos hoje às vítimas da resistência as liberdades democráticas que temos em nosso país”, disse o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão.

Ele ainda ressaltou a importância da digitalização como algo a reforçar a democratização do acesso a informações até então restritas, mas que precisam ser analisadas no contexto histórico em que foram produzidas. “Estes documentos devem ser olhados de forma conjunta com o material produzido pela Comissão de Anistia, onde a narrativa é construída a partir das vítimas. A concepção do acesso à informação vem para a formação crítica da sociedade e para o aperfeiçoamento da democracia.”

Abraão ainda destacou a parceria do Ministério da Justiça com o governo estadual. “Em matéria de direitos humanos, não há outro caminho que não a interação. A digitalização destes arquivos é uma ruptura de paradigma, de forma geral e irrestrita.”

O ex-governador de São Paulo José Serra (PSDB) reafirmou o caráter específico de muitas das documentações produzidas dentro das dependências do Deops. “Quando vi minha ficha no Deops, vi informações muito erradas. Os serviços de informações passados eram muito incompetentes.”

Alckmin ressaltou o Arquivo Público de São Paulo como o “maior e mais avançado de todo o país”, e disse esperar que a iniciativa da digitalização dos documentos sirva de exemplo para outros estados fazerem o mesmo.

A luta das famílias pelo resgate da memória e da verdade foi apontada pelo coordenador da CNV como essencial para a digitalização do acervo do Deops. “Sem os familiares e suas reivindicações não estaríamos aqui hoje, o processo seria muito mais demorado.” 

O coordenador da CNV informou que o trabalho da comissão, juntamente com a presidenta Dilma Roussef, o Ministério da Justiça, a Casa Civil e o Arquivo Nacional, permitiu o aporte de recursos necessário para a conclusão, até julho, da digitalização de 16 milhões de páginas de documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI), localizados no Arquivo Nacional. O acervo terá OCR, sistema que permite o reconhecimento de caracteres óticos dos documentos, facilitando a análise dos mesmos pela Comissão da Verdade.

O acesso à documentação do Deops está disponível no Arquivo Público de São Paulo desde 1994. “Mas o acesso pela internet representa agora um grande diferencial de nosso arquivo”, disse o coordenador do local, Carlos Bacellar.

A Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) foi lembrada por Paulo Sérgio Pinheiro como uma importante conquista para obtenção de informações antes inalcançáveis. O capítulo que trata das restrições de acesso estabelece que “as informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição da informação”.

A digitalização dos materiais foi feita por meio de verbas de editais da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça e da Casa Civil da Presidência da República.

 

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