Família de Vladimir Herzog recebe atestado de óbito corrigido após 38 anos

Documento oficial agora oficializa versão defendida por parentes e amigos desde o começo, de que o jornalista não se suicidou, mas sim morreu devido a tortura na sede do DOI-Codi, em SP

“É a primeira vez que a União assina embaixo a versão de que Vlado foi assassinado”, diz Clarice (Foto: Paula Sacchetta)

São Paulo – Talvez tenha sido o atestado de óbito mais alegremente exibido na história recente do país, saudado com uma intensa salva de palmas e lágrimas de emoção. Clarice, Ivo e Lucas, esposa, filho e neto de Vladimir Herzog, jornalista assassinado pela ditadura em 1975, não poderiam reagir de outra maneira. Felizes, ergueram o pedaço de papel à altura do ombro para que toda a imprensa registrasse o momento. A partir de hoje (15), quase 38 anos depois, não existe mais nenhuma dúvida sobre a falsidade da foto em que Herzog aparece enforcado numa das celas do Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações para Defesa Interna, em São Paulo. A versão que passa a valer agora, com timbre oficial, é a de que Vlado, como era conhecido, perdeu a vida em “decorrência de lesões e maus-tratos sofridos durante interrogatório em dependência do II Exército (DOI-Codi)”.

Amigos, colegas e familiares sempre souberam disso. O repórter Audálio Dantas presidia o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na época em que Vladimir Herzog foi torturado e morto pelos agentes do Estado brasileiro. Foi uma das vozes que se ergueram publicamente em 1975 para denunciar o crime cometido pela ditadura – e a farsa que pretendeu emplacar na história. Hoje, tinha lugar reservado numa das primeiras fileiras para ver as autoridades entregarem o novo documento à família.

“Desde o primeiro momento rejeitamos a ideia de que Vlado havia se suicidado. Por isso é que denunciamos aquela mentira desde o início. Sempre soubemos que havia sido um assassinato”, afirmou à RBA. “A morte de Herzog foi um marco da história recente do país, porque a partir de então a sociedade brasileira manifestou que não suportava mais a opressão, os assassinatos, as prisões, as torturas. É uma pena que os governos democráticos tenham tardado tanto para tomar uma atitude como essa.”

Tamanha demora não abalou as forças da viúva de Vlado, Clarice, que também nunca teve dúvidas de que seu marido havia sido morto. “Vlado tinha mil projetos de vida”, conta, recordando sua primeira reação ao ver pessoas engravatadas se aproximando de sua casa, com ar solene, pouco depois da prisão de Herzog. “Só consegui gritar: mataram o Vlado! mataram o Vlado!”

De lá para cá, Clarice virou um dos símbolos da luta pelo esclarecimento das violações aos direitos humanos cometidas pelos agentes do Estado brasileiro durante a ditadura. Virou também letra de uma canção de João Bosco. E hoje se diz satisfeita com a recente vitória – apenas mais uma numa sequência de dois anos de grandes conquistas para os familiares das vítimas. “É a primeira vez que a União realmente assinou embaixo que o Vlado foi assassinado. Várias famílias agora terão o mesmo direito que nós tivemos. É um ato de reparação histórica.”

Agora, justiça

Mas a batalha não vai parar. “Claro que vamos continuar. Queremos saber quem foram as pessoas que mataram não apenas o Vlado, mas todos os que perderam a vida durante o regime”, antecipa a viúva. “Essas pessoas estão aí, trabalhando, recebendo salário pagos com nossos impostos. Estão nos órgãos públicos até hoje.” De acordo com o filho de Vladimir Herzog, Ivo, que dedica a vida à preservação da memória do pai à frente do Instituto Herzog, o próximo passo é ver os responsáveis sentados no banco dos réus. “Estamos com uma ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos aguardando que o processo sobre a morte do meu pai seja admitido pela Corte Interamericana.”

Caso isso ocorra, o Estado teria a obrigação legal, pelos acordos internacionais que subscreve, de investigar o assassinato do jornalista. “A gente espera que nesse meio-tempo o Brasil aceite rever sua postura. Também temos esperança que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja seu parecer sobre a Lei de Anistia e a aplique como deve aplicar, unilateralmente, porque é uma lei para os presos e perseguidos políticos, e não para os agentes do Estado que usaram de toda a violência.”

Presente ao evento, que ocorreu no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, na zona oeste da capital, a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, não conseguiu segurar as lágrimas. Ao fazer uso da palavra, disse que, se o país vive atualmente seu mais longo período democrático, isso se deve em parte à vida de pessoas que foram torturadas e morreram porque ousaram opor-se ao regime militar.

“Devemos reconhecer as perseguições e assassinatos produzidos pelo governo naquela época como um projeto de terrorismo de Estado”, afirmou, dizendo-se aliviada por finalmente ver a correção no atestado de óbito de Vladimir Herzog. “Tanto tempo depois ainda éramos obrigados a conviver com essa falsidade. Hoje revelamos uma das muitas mentiras contadas por aqueles que detinham o poder e que, mesmo derrotados pela democracia, ainda mantêm essas mentiras nos documentos oficiais.”

Após a entrega do novo atestado de óbito à família Herzog, que foi assistido por uma série de personalidades políticas e culturais do país, o Instituto de Geociências sediou a 68ª Caravana da Anistia, que concedeu o título de “anistiado político” ao estudante da faculdade, Alexandre Vannucchi Leme, assassinado pelo regime em 1973.

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