Promotora diz que retificação de atestado não favorece memória de Vladimir Herzog

Autora de recursos contra alterações no documento, Elaine Garcia argumenta não é possível saber a causa da morte do jornalista, e que 'maus-tratos' é pouco para a violência que Vlado sofreu no DOI-Codi

Ato ecumênico na Catedral da Sé, na foto acima, levou a sociedade brasileira a reagir contra a morte de Vladimir Herzog (foto: Arquivo/Folhapress)

São Paulo – A 1ª promotora de Justiça de Registros Públicos da Capital, Elaine Garcia, disse à RBA hoje (17) que as mudanças realizadas no atestado de óbito do jornalista Vladimir Herzog “não favorecem a história nem a memória” de uma das vítimas mais notórias da ditadura brasileira. Vlado, como era conhecido, morreu em 1975 nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações para Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo. A versão oficial dizia que o jornalista havia morrido em decorrência de “asfixia mecânica por enforcamento” e foi fruto da farsa montada por seus executores. Segundo os militares, Herzog teria se suicidado com o próprio cinto dentro da cela.

No último 24 de setembro, a pedido da família e da Comissão Nacional da Verdade, o juiz Márcio Martins Bonilha Filho determinou a alteração do atestato de óbito para “morte por decorrência de lesões e maus-tratos sofridos durante interrogatório em dependência do II Exército (DOI-Codi)”. No início de novembro, a promotora Elaine Garcia moveu um recurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para que a alteração fosse parcialmente revertida. Mas veredicto do desembargador José Renato Nalini, corregedor geral de Justiça, emitido no último dia 12, manteve a nova versão do documento.

De acordo com Elaine, o Ministério Público era favorável a retirar do atestado de óbito a informação de que Vladimir Herzog havia morrido em decorrência de enforcamento. “O laudo que sustenta a versão da asfixia foi assinado por dois médicos, mas um deles não viu o corpo e, o outro, entendemos que não tinha a segurança necessária na época para afirmar as reais causas do óbito”, explica a promotora. “Portanto, o laudo estava viciado.” Elaine era também favorável à inclusão, nos registros públicos, de que o jornalista havia perdido a vida nas dependências do DOI-Codi. “Não há qualquer dúvida em relação a isso.” Assim, o MP contemplava alguns pedidos da família Herzog e da Comissão Nacional da Verdade.

“Mas não concordamos em colocar que o falecimento se deu por lesões corporais”, pondera. “Para que se reconheça no atestado que houve lesões, é preciso que um médico analise essas lesões e diga que tipo de lesão levou à morte.” Elaine explica que, como o laudo foi desqualificado e os restos mortais de Vlado não passaram por nenhum exame posterior, não é possível estabelecer quais as razões exatas de sua morte. “Portanto, em nosso parecer, pedíamos que o novo atestado de óbito trouxesse a informação de que Vladimir Herzog havia morrido violentamente, reconhecendo a violência, mas por causas desconhecidas”, revela a promotora, que pela primeira vez deu declarações sobre o caso. “Colocar genericamente que houve lesão não resgata a verdade. É muito vago. E a verdade é que as pessoas entravam no DOI-Codi, eram mortas lá dentro e os responsáveis pela morte faziam de tudo para maquiá-la.”

Elaine Garcia também é contra a inclusão do termo maus-tratos como causa da morte por se tratar de uma figura jurídica demasiado leve para descrever o que ocorreu com o jornalista nos porões da ditadura. “Há uma definição legal para maus-tratos, seu conceito está no Código Penal”, lembra. “É um crime de menor potencial ofensivo, e não me parece que foram os maus-tratos que levaram à morte.” A promotora destaca ainda que os maus-tratos apenas podem ser cometidos por alguém que tenha legalmente autoridade, guarda ou vigilância sobre a vítima. “Não foi o caso de Vladimir Herzog, porque ele foi preso ilegalmente”, pontua. “Não estava sob vigilância legal do DOI-Codi.” Elaine prossegue, adicionando que a pena prevista para crimes de maus-tratos varia de dois meses a um ano de detenção. “É muito pouco para o que aconteceu”, avalia. “A nova versão do atestado de óbito, que ficará nos registros públicos, está aquém da verdade.”

Em sua sentença, o desembargador José Renato Nalini discorda do recurso movido pelo MP por causa de seu excesso de formalismo, sublinhando que os princípios constitucionais que defendem a dignidade humana sempre devem prevalecer sobre as formalidades legais. “É preciso levar a Constituição a sério, e ela não compatibiliza com a satisfação do formalismo em detrimento do justo, do real e do verdadeiro”, anotou. “A retificação do atestado restebelece a verdade real.” À RBA, a 1ª promotora de Justiça de Registros Públicos se absteve de comentar a sentença, mas defendeu sua postura. “Realmente, minha posição é mais formal, mas entendo que, neste caso, a versão mais formal do atestado de óbito atenderia melhor à versão histórica”, diz. “Não fiz por mero formalismo, mas por acreditar que condiz mais com a realidade.”