Tombamento de sede do DOI-Codi em SP deve ser concluído em até seis meses

Audiência promovida pela Comissão da Verdade de São Paulo pede que delegacia que funciona onde antes operou a ditadura seja desativada para se transformar em centro de memória

Um dos comandantes do Dops e do DOI-Codi, o delegado Sérgio Paranhos Fleury se transformou em um dos rostos mais conhecidos da repressão (Foto: José Nascimento/Acervo UH/Folhapress)

São Paulo – A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” realizou hoje (29) audiência pública na Assembleia Legislativa para pedir o tombamento do prédio onde atualmente está instalado o 36° Distrito Policial, no bairro do Paraíso, zona sul da capital, e sua transformação num memorial contra a tortura. O edifício localizado entre as ruas Tutoia e Tomás Carvalhal abrigou oficialmente, a partir de 1969, a sede do Departamento de Operações e Informações e o Centro de Operações de Defesa Interna, órgãos repressivos da ditadura militar mais conhecidos pela sigla DOI-Codi. Ali morreram, entre outros, o metalúrgico Manuel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog.

“O local não é arquitetonicamente fundamental, mas sim historicamente fundamental. Foi um lugar determinante para a história do país nos últimos 50 anos”, afirma Ivan Seixas, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), uma das entidades que propõem o tombamento do 36º DP. Seixas foi um dos muitos brasileiros que passaram pelas celas do DOI-Codi e foram submetidos a sessões de tortura em suas salas. “Nossa proposta é criar nesse local um centro de referência da luta contra a tortura e a violência do Estado – que não é algo apenas dos tempos da ditadura. Queremos que o prédio seja uma condenação que a democracia faz contra a tortura.”

A iniciativa se inspira no Museu da Resistência, que desde 2008 funciona no antigo edifício do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), na região da Luz, centro de São Paulo, e atualmente registra uma visitação mensal de cerca de 5 mil pessoas. “É o sexto museu mais frequentado da capital”, pontua Maurice Politi, membro do Núcleo de Preservação da Memória Política. “Numa cidade onde funcionam 48 museus, o Memorial da Resistência fica atrás apenas do Museu do Futebol, Masp, Pinacoteca, Museu da Língua Portuguesa e Museu de Arte Sacra, e a maioria dos visitantes são jovens atrás de informação sobre a ditadura.” Para Politi, o interesse da população fará com que esse novo memorial tenha ainda mais apelo. “O DOI-Codi é muito mais simbólico e representativo que o Deops.”

Tombamento

O presidente da Comissão paulista da Verdade, deputado estadual Adriano Diogo (PT), recorda que já existe um processo tramitando no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) de São Paulo com vistas ao tombamento do prédio. Por isso, o órgão ligado à Secretaria de Estado da Cultura enviou hoje duas representantes à audiência pública para assistir aos depoimentos de ex-presos políticos que passaram pelas instalações do DOI-Codi – inclusive sua vice-presidenta, Marilia Barbour.

O pedido de tombamento foi enviado ao Condephaat em 2010, mas o órgão só aceitou iniciar a investigação em maio deste ano. Durante esse período, o processo correu em sigilo para evitar que o prédio fosse demolido. Uma vez iniciado o trabalho de pesquisa, porém, o 36° DP fica protegido de qualquer alteração. É a situação atual. As representantes do Condephaat garante que, dentro de seis meses, no máximo, os estudos sobre a importância cultural e histórica do edifício estarão concluídos, e um relatório será enviado aos conselheiros do órgão para que finalmente tomem uma decisão.

Do ponto de vista técnico, Marilia Barbour acredita que não há razões para que a antiga sede do DOI-Codi não receba parecer favorável. “Os indícios são fortíssimos”, reconhece. Já a transformação do imóvel em museu ou memorial não diz respeito ao Condephaat. “Dependerá de outras instâncias da administração pública.”

Memórias

Estudante de Física da Universidade de São Paulo (USP) em 1972, quando foi preso e levado ao DOI-Codi, Artur Scavone foi à Assembleia Legislativa contar um pouco do que passou durante os nove meses em que esteve detido no prédio. “O que ouvíamos ali eram gritos, choros e berros o tempo todo, todos os dias, de manhã, à tarde e de noite”, revela. “E havia um procedimento ameaçador permanente.”

Scavone lembra de alguns detalhes que contribuíam para o clima de terror que pairava sobre os prisioneiros. “Eles faziam questão de jogar o cano do pau-de-arara no chão, para que o barulho dissesse aos prisioneiros que o equipamento estava sendo montado e que alguém ali seria torturado”, diz. “O barulho da chave também era violento: queria dizer que o carcereiro vinha abrir uma cela pra levar alguém pra tortura.”

Hoje médico, Reinaldo Morano também frequentou as celas do DOI-Codi em 1970, quando ainda era estudante. Em seu depoimento à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Morano afirmou que estava em sua cela quando José Maria Ferreira de Araújo, codinome Arariboia, foi preso, torturado e morto em questão de horas. “De onde eu estava se ouviam os gritos”, conta. “Quando os berros cessaram, o carcereiro desceu e falou que ele tinha morrido.”

O médico acredita que o tombamento do edifício onde hoje funciona o 36° DP é uma dívida que o Brasil tem para com seus cidadãos que perderam a vida e a saúde no local. “É uma dívida que temos com o Arariboia, Jonas, Herzog, Bacuri e todos os companheiros que foram assassinados e torturados ali.”

Valorização

A procuradora regional da República Sandra Kishi afirma que o tombamento da antiga sede do DOI-Codi vai valorizar os direitos humanos e a democracia. “É inegável que o edifício guarda as marcas da violência de um período histórico terrível, de um estado de exceção”, avalia. “Atualmente o tombamento deve se prestar também para tutelar bens imateriais, como a memória coletiva. Portanto, é possível que se tombe um prédio público pelo seu suporte imaterial. E tem mais: o tombamento tem sido usado para reparar injustiças históricas.”

Um motivo adicional para o tombamento do 36° DP, conclui Ivan Seixas, do Condepe, é o relativo abandono em que se encontra o prédio hoje em dia. “Onde ficavam as celas há uma espécie de almoxarifado da Polícia Civil”, afirma. “Não há ocupação efetiva do prédio. Portanto, a utilização pra qualquer coisa, inclusive para nossa proposta, é absolutamente viável.”