‘Policial deve ser alguém treinado para jamais matar’, diz defensora pública

Coordenadora auxiliar do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria de São Paulo, Daniela Skromov espera mais transparência, mais inteligência e menos repressão do novo comando das polícias

A defensora adverte que a opção do governo paulista por uma política de repressão é de difícil controle (Foto: Marcelo Camargo. Arquivo ABr)

São Paulo – A coordenadora-auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Daniela Skromov, espera que o novo comando das polícias civil e militar paulistas, empossados hoje (27) pelo também novo secretário de Segurança Pública, Fernando Grella, aja com mais transparência e invista mais em inteligência e menos em repressão. “De fato, a mudança era necessária”, disse à RBA. “Vinha havendo um desgaste absurdo, porque até os próprios policiais começaram a se opor à política do governo e do antigo secretário, Antonio Ferreira Pinto.”

Uma das responsáveis por defender os direitos das vítimas de abuso policial no âmbito da Defensoria Pública, Daniela acredita ainda que a nova cúpula da Segurança deve apresentar um plano de metas para a redução da letalidade policial. “E, claro, reprimir os grupos de extermínio”, pontua. “Independente da intenção de matar ou não, um policial que mata talvez esteja dando sinais de que não está habilitado para atuar nas ruas.” Na entrevista abaixo, a defensora afirma que a nova onda de violência que atinge as cidades paulistas pode ser um sinal de falência do modelo repressivo. “Se o próprio Estado estimula e pratica a violência, isso estimula o particular a cometer a violência.”

Como você, na condição de defensora pública, avalia a mudança na cúpula da Polícia Militar de São Paulo?

O que me parece é que vinha havendo um desgaste absurdo, porque até os próprios policiais começaram a se opor à política do governo e do secretário. Você via familiares de policiais pedindo a saída do secretário. Tudo que vem acontecendo é complexo, mas é fruto também da violência praticada pela Polícia Militar. A violência sempre funciona como um ciclo. Normalmente eu escuto isso: ‘quando um bandido mata, ninguém filma’. Mas a pessoa que está fora da lei, você espera que ela aja fora da lei. Mas a pessoa que é paga para ser representante do Estado, você supõe que ela se porte pela legalidade. E a legalidade implica o respeito à vida de quem quer que seja.

É claro que é sempre mais espantoso – e tem de ser mesmo – ver um agente da legalidade agindo ilegalmente ou se equiparando a um fora da lei. Isso é complicado, porque a opção pela polícia repressiva implica o uso da força. E a força é de difícil contenção – tende sempre a aumentar. De fato, é muito importante desestimular e reprimir o comportamento violento dentro da PM. Mas a própria opção pelo investimento maciço numa polícia de repressão tende ao abuso da força. Talvez tenhamos de repensar o modelo de polícia em si. O modelo que vê o cidadão como um indivíduo a ser eliminado tende ao abuso. Estruturalmente falando. Não é uma questão ideológica, mas prática. É incompatível com as regras democráticas, que não admite que ninguém seja visto como inimigo.

Que tipo de comportamento da Secretaria de Segurança Pública você, como defensora pública, gostaria de assistir?

Num primeiro momento, transparência e investimento no trabalho de inteligência da polícia, e não na repressão. Me parece que, definitivamente, toda morte cometida por policial tem que ser investigada como homicídio – e não como auto de resistência. Isso deveria ter sido mudado há muito tempo. Caberia à nova Secretaria apresentar um plano de metas concreto para a redução da letalidade policial. E, claro, reprimir os grupos de extermínio. Independente da intenção do policial de matar ou não, se foi um homicídio doloso ou não, um policial que mata talvez esteja dando sinais de que não está habilitado para atuar nas ruas – mesmo aquele que, em tese, mata em legítima defesa. Deveria haver um planejamento transparente e sério de retirada das ruas dos policiais que se envolvem em evento-morte. A morte não pode ser vista como algo corriqueiro. Policial deve ser alguém perito em jamais matar. Porém, o que vemos são policiais com inúmeros envolvimentos em morte atuando na rua.

Um policial que mata hoje não é investigado por homicídio?

Depende. Se alguém teve sorte de filmar e colher provas, aí sim, ele é investigado por homicídio. Se a cena do crime foi alterada, não será investigado. Há uma determinação que mesmo os autos de resistência sejam investigados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil. Mas, quando começa como resistência, normalmente o foco da investigação é na ação do morto, não do policial, porque o morto praticou o crime de resistência. Isso é completamente equivocado.

Também foi trocado o comando da Polícia Civil. Como você vê a relação entre Polícia Civil e Militar?

O que vimos nos últimos tempos foi um sucateamento completo da Polícia Civil, que por muito tempo foi tida como a ‘polícia corrupta’. As polícias em geral, no mundo inteiro, tendem a exacerbar seu poder – porque é muito poder. É da própria essência da polícia. Daí a necessidade de um controle maior. A polícia do Estado democrático é a polícia investigativa. É ela que pode atingir a criminalidade mais significativa – e não a polícia repressiva. Mas praticamente não existe trabalho investigativo. O processo criminal começa com a prisão do pobre na rua, ou num barraco. É dessas pessoas que a cadeia está abarrotada. Mesmo nos homicídios, que é o crime que viola o valor mais sagrado, que é a vida, você não tem esclarecimento de autoria. No máximo 8% dos homicídios são investigados. Isso tem de ser reavaliado como prioridade.

E a corrupção policial?

Nos últimos tempos antes dessa onda de violência ficou evidente que há sérios problemas de corrupção na Polícia Militar. E é lógico que seja assim, porque a corrupção está intimamente atrelada à violência e ao abuso de poder. Se você tem o poder de vida ou morte sobre as pessoas, você tem um campo fértil para a corrupção. Daí, a vida e a liberdade passam a ter um preço. Por muito tempo se abafou isso. Mas tem de se reprimir o crime dentro das instituições do Estado, porque ele existe. E não é possível compactuar, estimular ou deixar que a violência estatal frutifique. Isso é muito sério.