São Carlos peita o preconceito e cria políticas de inclusão para travestis

Cidade do interior paulista começa a aceitar o uso do nome social adotado pelas travestis e investe na capacitação profissional como alternativa à prostituição

A quarta edição da Parada Gay de são Carlos reuniu 50 mil pessoas na quarta edição, em maio passado, na luta contra a impunidade aos homofóbicos (Foto: Prefeitura Municipal de São Carlos)

São Carlos – A travesti Patrícia D’Brown, de 26 anos, faz programas sexuais desde os 17, depois de ter sido demitida do emprego de empacotadora em um mercado por puro preconceito. Tornou-se uma pessoa fria para o amor por conta dos perrengues que já enfrentou na noite. Zanzou muito tempo pelas ruas, época em que foi roubada pelo menos seis vezes. Também já foi abandonada por alguns clientes, outros tentaram levar seu dinheiro e houve um que atirou na moça porque ela se recusou a transar sem preservativo. Chegou a fazer perto de 20 programas em uma noite, mas de dois anos para cá só dá atendimento a conhecidos, que a contatam pelo celular, em encontros que podem durar de cinco minutos a duas horas. Tem em mente a possibilidade de viajar no ano que vem para a Europa estimulada pelos relatos de uma amiga que conseguiu um bom dinheiro “fazendo a vida” em Roma, na Itália. 

Patrícia acompanhou a reportagem pelas ruas da cidade de São Carlos, no interior paulista, onde vive, detalhando todas as características, como os pontos de prostituição de mulheres, os de travestis, e os de tráfico de drogas, todos em avenidas próximas à rodovia Washington Luiz, a SP-310. Gabou-se de conhecer a região como a palma de sua mão e lembrou do tempo em que a polícia era violenta com as meninas. “Antes eles batiam, hoje não mais. Se o governo faz políticas públicas, a polícia respeita”, comentou, acrescentando que se os policiais flagram a travesti com alguém em lugar impróprio eles apenas pedem para saírem. “As coisas melhoraram muito, mas antes a gente apanhava muito.”

A política pública à qual Patrícia referiu-se tem origem na fundação da ONG Visibilidade LGBT, em 2009. Logo depois de criada, a entidade cobrou do município a realização de uma conferência para discutir políticas públicas, e hoje a legislação local garante a realização do encontro de dois em dois anos. No mesmo ano foi criado o Conselho da Diversidade Sexual. Em 2011, a Divisão de Políticas para Diversidade Sexual, e em 2012, o Plano de Políticas para Diversidade Sexual, que prevê ações e metas para a próxima década. “Com isso, São Carlos é a primeira cidade do país a completar o tripé da Cidadania LGBT”, disse o chefe da Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual”, Alexandre Sanches. “A cidade consolidou as ações e tornou-se referência na política de atenção às minorias”, afirmou.

Em 18 de maio passado foi realizada pela prefeitura e a ONG Visibilidade LGBT a quarta edição da Parada do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). O evento tem crescido ano a ano com objetivo principal de estimular o combate à homofobia e lutar pela cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. O tema desta edição foi “Contra a discriminação e impunidade, homofobia também é crime”. O evento passou de 10 mil participantes em 2009 para 50 mil neste ano.

Inclusão

Para incentivar a inclusão do grupo LGBT no mercado de trabalho, a Divisão de Políticas para Diversidade Sexual, em parceria com a ONG Visibilidade LGBT, desenvolveu o programa de empregabilidade. No primeiro semestre, por exemplo, foi ministrado um curso de confecção de biojoias de 36 horas com foco, não exclusivo, nas travestis, e já eram planejados outros – de chaveiro, trançadeira, de confecção de sacolas e de imãs de geladeira, ainda em fase de implementação. No caso das biojoias, por exemplo, a aluna adquiria um kit com peças por R$ 100 e conseguia faturar R$ 400. 

Parece pouco, mas é um começo. Uma porta que pode se abrir na direção contrária à prostituição. É por falta de aceitação da sociedade que as travestis abandonam os estudos e, por consequência, têm limitadas as possibilidades de atuação profissional, daí a fazerem a vida nas ruas. Um problema que começa dentro de casa, com a rejeição dos pais e, em geral, a expulsão do convívio familiar.

Algo que se estende para o ambiente escolar, onde as travestis enfrentam ataques de bullying, em especial porque não são tratadas por seus nomes sociais, aqueles que adotam quando se assumem de outro sexo. É muito cruel para um homem que nasceu com identidade de gênero feminina, e aceita essa condição se travestindo, ser chamado pelo nome de registro. Na hora da chamada, por exemplo, os colegas se acabam de rir quando a menina é chamada por nome masculino.

Alexandre Sanches e sua atenção às jovens travestis

Essa situação é enfrentada diariamente por três inseparáveis amigas do bairro da periferia de São Carlos Antenor Garcia, Tiffanny, de 15 anos, Melissa, de 16, e Rhayara, de 16 (na foto descaracterizadas por serem menores de idade, na companhia de Alexandre Sanches). Na escola onde estudam a diretora relutou em aceitar o uso do nome social e as meninas sentiam-se frequentemente humilhadas pelos colegas e professores. A decisão de tratar as três pelo nome que escolheram só veio depois de a escola ser obrigada pela Secretaria de Educação, com base no decreto 55.588, de 2010, que prevê o uso do nome social no âmbito da administração direta e indireta do estado.

Alexandre Sanches comentou que a diretora é uma pessoa autoritária e que ainda não apresentou uma solução para o uso do banheiro pelas travestis. É uma situação constrangedora porque se elas vão ao banheiro masculino têm de aguentar as piadas dos garotos. No das meninas são impedidas de entrar. Resta a elas um banheiro nos fundos da biblioteca que sempre está trancado, o que expõe as três a mais constrangimento. “É uma situação muito perversa”, lamentou o chefe da Divisão de Políticas para Diversidade Sexual.

Tiffanny, Melissa e Rhayara estão muitos passos além da maioria das travestis. Diferentemente da maioria, elas têm aceitação e apoio dos familiares. Não desistiram de estudar, apesar das agruras relatadas e vislumbram um futuro muito bacana longe da prostituição. A primeira quer estudar moda, a segunda ainda não sabe a vocação e a terceira sonha ser advogada. Tiffanny até passou raspando “na vida”. Saiu uma vez para fazer um programa, mas não gostou do que teve de vivenciar, e pulou fora. Questionadas sobre como vão enfrentar os preconceitos que podem aumentar cada vez mais, concordam que nada na vida é fácil. Para tudo há barreira e, se for preciso “virar homem”, para se defender elas não pensarão duas vezes. 

Na tarde de uma segunda-feira ensolarada, as meninas andavam tranquilamente pelas ruas do bairro. Nem piadinhas nem afrontas. Segundo Sanches, elas são protegidas pelos traficantes locais. “Eles não querem confusão, nada que atraia a polícia para o bairro. Por isso, elas são respeitadas”, relatou.

Com Sheylla, de 18 anos, o caminho da prostituição também não teve espaço depois uma tentativa frustrada, na qual quase apanhou do cliente. Ela sonha em ser cantora e pretende fazer um curso de voz. Pouco tempo atrás compôs uma música contra o preconceito. Para fazer frente às dificuldades, tenta ser aplicada nos estudos. Além do curso de biojoias que cursou, frequenta o técnico de auxiliar administrativo no Senai, além de cursar o primeiro ano do ensino médio. “Na escola ninguém me xinga, não sofro preconceito porque conquisto as pessoas”, disse a menina. Ademais, ela se traveste apenas aos finais de semana. Até mesmo na igreja que frequenta aos domingos ela é aceita por pelo menos metade dos fiéis.  

Cidadania?

Para a coordenadora política e fundadora da ONG Visibilidade LGBT, Phamela Godoy, o respeito ao nome social é fundamental para a cidadania. O decreto 55.588 não abrange instituições municipais. Mas São Carlos já tem negociado o direito em alguns órgãos, e melhor, já tem o decreto municipal redigido, prestes a ser publicado. “Sem o respeito ao nome social as travestis não têm acesso à escola, ao trabalho, aos serviços de saúde”, desabafou Phamela. E esta é uma necessidade primordial delas, que já enfrentam tantas adversidades. 

Phamela conta que há casos de as meninas serem retiradas de ônibus por motoristas, cobradores e a expulsão chega mesmo a ser provocada pelo constrangimento dos olhares reprovadores e das chacotas da sociedade. “Elas sofrem todo tipo de agressão, seja física, verbal ou moral”, lamentou a ativista.

A ONG, no âmbito do serviço público, propõe capacitação profissional para acabar com o preconceito do funcionalismo. Afinal, como disse Phamela, as travestis precisam ser respeitadas e aceitas para ter acesso aos serviços. Para ela, em passos muito consistentes os resultados estão chegando. “Quem cobra tudo de uma vez não tem nada. Por isso, São Carlos deu certo no combate à homofobia e nas políticas inclusão para a população LGBT”, comemorou.

Ainda falta, segundo Phamela, instrumentos de denúncia contra a homofobia na cidade. “Denunciar a homofobia para os moradores do interior do estado é inviável porque no decorrer do processo é preciso estar na capital inúmeras vezes para as audiências”, disse. O decreto estadual 10.948, de 2011, estabeleceu diferentes formas de punição a atitudes discriminatórias relacionadas aos grupos de pessoas que têm manifestação sexual perseguida por homofóbicos e intolerantes.

Atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 122, que prevê a criminalização da discriminação gerada por diferentes identidades de gênero e orientação sexual.

 

 

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