Aceitas duas primeiras denúncias contra agentes da ditadura

Major Lívio Augusto Maciel e Sebastião Rodrigues Moura, o Curió, são os primeiros que podem sofrer condenação penal; procurador afirma que sucesso na argumentação era 'questão de tempo'

São Paulo – A juíza Nair Cristina Corado Pimenta de Castro fez história ao receber, em um só dia, as duas primeiras denúncias no âmbito penal contra agentes da ditadura brasileira (1964-85). Por decisão da titular da 2ª Vara Federal em Marabá, no Pará, terão sequência as ações contra o major da reserva Lívio Augusto Maciel, conhecido como doutor Asdrúbal, e o coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió.

São duas decisões de caráter diferente. No caso de Curió, trata-se de uma reavaliação da negativa apresentada anteriormente pelo juiz federal João César Otoni de Matos, que, ao substituir Nair Pimenta de Castro, resolveu barrar a ação com base no longo tempo de ocorrência dos fatos e em função de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), tomada em 2010, de dizer que a Lei de Anistia, aprovada em 1979, dá guarida a torturadores. Agora, a juíza aceitou a argumentação do Ministério Público Federal (MPF) e decidiu dar sequência ao caso pelo sequestro de cinco militantes entre janeiro e setembro de 1974. Maria Célia Corrêa (Rosinha), Hélio Luiz Navarro Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antônio de Pádua Costa (Piauí) e Telma Regina Cordeira Corrêa (Lia) foram levados às bases militares comandadas por Curió. 

O teor da argumentação da juíza no caso do major Lívio Augusto Maciel ainda não é conhecido. O militar foi denunciado rapto de  Divino Ferreira de Sousa, o Nunes, visto pela última vez em 1973. Segundo as apurações, o combatante foi emboscado em 14 de outubro daquele ano pelas tropas comandadas por Lício. Os três guerrilheiros que acompanhavam o militantes foram mortos no mesmo momento, e ele foi levado com vida para a base militar da Casa Azul, em Marabá, no Pará. 

“Hoje é um dia importante porque são as primeiras decisões positivas e nós imaginamos que é um caminho que será consolidado”, afirmou, por telefone, o procurador regional da República em São Paulo Marlon Weichert, um dos integrantes do Grupo de Justiça de Transição do MPF, responsável pelas duas ações. “A gente sabia que era uma questão de tempo para que o Judiciário começasse a fazer uma reflexão mais aprofundada desses aspectos. As denúncias até agora oferecidas adotam uma tese defendida pelo Supremo Tribunal Federal. Não há nenhuma inovação no pedido.”

A juíza acolheu a argumentação anterior do STF de que sequestros são crimes continuados, que não cessam enquanto não se apresenta o corpo, não se comprova a morte ou se coloca a vítima em liberdade. Os ministros da máxima Corte se valeram desta visão por duas vezes ao julgar pedidos de extradição apresentados pela Argentina em casos de colaboradores da ditadura naquele país (1976-83). 

“Era a grande brecha que estávamos esperando pra realização de justiça no Brasil”, manifestou a diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), Beatriz Affonso. “A gente entende que essa decisão de aceitar a denúncia criminal vai trazer nao só a possibilidade de responsabilizar os envolvidos no crime da ditadura, como a realização da verdade juidicial. Ao longo dos processos, essa verdade, que é tão controversa, vai poder ser esclarecida judicialmente, com todas as garantias que a democracia oferece, direito ao contraditório e à defesa.”

Agora, a magistrada aponta que a investigação penal sobre os crimes é um direito das famílias das vítimas e pode, inclusive, levar à certeza sobre a morte dos militantes. “Se dúvidas há, e sendo elas calçadas em investigação precedente, a recepção da denúncia conta em favor da sociedade”, indicou na decisão sobre Curió. “Há, e isso é decisivo para o que se analisa, informações de que haveriam pessoas que, dadas como mortas, viveriam sob nova identidade, sendo-lhes defeso revelar-se por receio de serem justiçados”

Nair Pimenta de Castro foi, inclusive, além da argumentação do STF nos casos de extradição e afirmou que a Lei de Anistia, aprovada em 1979 pelo Congresso ainda sob ditadura, não pode, neste caso, valer como impeditivo para apurações sobre os fatos do passado. “Na hipótese dos autos, entretanto, está-se diante de algo que não passou, de evento que, em tese, não ficou no passado, antes perdura até que os indícios de sua permanência sejam suplantados por elementos evidenciadores de sua cessação”, disse. 

Avanços e recuos

“É um processo sem volta, disso eu tenho certeza”, afirmou Beatriz Affonso. “Outros casos vão chegar, uns serão rejeitados, outros aceitos. mas é uma mudança cultural que só vai ocorrer por meio desses processos.” Antes disso, além da primeira recusa ao caso de Curió, o Judiciário havia rejeitado a abertura de ação contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi, um dos principais órgãos da repressão, e o delegado da Polícia Civil Dirceu Gravina, ainda na ativa, pelo sequestro do líder sindical Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, desaparecido desde 1971.

Este mês, porém, Ustra sofreu um revés com a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo de reconhecê-lo como torturador e responsável pelas ações criminosas ocorridas no DOI-Codi. A ação movida pela família Teles não resulta em condenação penal, mas abre caminho para que novas denúncias sejam apresentadas contra o coronel da reserva.

Antes disso, o juiz Guilherme Dazem Madeira havia aceito pela primeira vez a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao determinar que fosse alterada a causa da morte do militante João Batista Drumond, assassinado em 1976. A Corte, integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil no caso Gomes Lund, relativo à Guerrilha do Araguaia, e determinou que a Lei de Anistia deixasse de servir como empecilho para investigar e punir os crimes cometidos por agentes do Estado. ““Isso confirma o que a gente vinha defendendo, de que num primeiro momento a decisão da Corte provocaria certa resistência, mas conforme isso se aprofunde vai passar a ser aceito como uma questão corriqueira, esse diálogo entre o Direito internacional e o Direito interno”, observa o procurador Marlon Weichert.

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