Acolhida no país pode ser a retomada para quem chegou ao fim da linha no exterior

No Aeroporto de Guarulhos, uma das principais rotas de tráfico nacional e internacional de pessoas, a acolhida para quem deu de cara com o fundo do poço

Depois de exploradas, vítimas podem ser descartadas como mercadoria e necessitam de apoio público para recomeçar (CC/Flickr/Aticolunatico)

São Paulo – Morena bonita do Norte, ela não teve dificuldade de entrar para o mundo da prostituição. O que não falta são criminosos de olho em moças vistosas que eles possam explorar e que venham a lhe render bons frutos. Foi para a Espanha, lá no Primeiro Mundo, como certamente sonhava. Logo depois da chegada começou a encarar uma realidade bem adversa. Teve problemas com seus cafetões. Passou dois anos de prostíbulo em prostíbulo. Ficou viciada nas drogas oferecidas gratuitamente no início. Daí ao endividamento com os exploradores foi um pulo. Quando estava dependente por completo, se arrastando, e com pouca utilidade para os criminosos, foi jogada na rua. Uma mercadoria.

O resumo da história é esse, mas o desfecho envolveu a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude, a Asbrad. A entidade foi acionada pela rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas, que tem sua ramificação fora do país, para recepcionar a moça no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Por razões não muito claras, várias vezes ela foi esperada, mas não aparecia.

Quando finalmente chegou, estava em situação crítica, sofrendo crises de abstinência de drogas. Foi acolhida, passou dez dias em Guarulhos em tratamento e partiu para sua cidade, onde encontraria uma família com a qual tinha conflitos. No tempo em que esteve sob cuidados da Asbrad não prestou informações consistentes sobre sua situação. A entidade perdeu contato com a garota. Os telefones informados não atendem. Não há como saber o paradeiro. “A pessoa quer romper com o passado”, observa a presidente da entidade, Dalila Figueiredo.

A realidade enfrentada por mulheres e travestis e também por homens no mundo da prostituição fora do país, em grande parte dos casos, é o endividamento com os aliciadores, que cobram com o sacrifício das vítimas submetidas a diversos programas diários, sem preservativos muitas vezes, a retenção do passaporte, o que as coloca em estado escravidão, fome, doenças e muito mais. Quando se dão conta, acabou o sonho que começou com as fantasias contadas pelos criminosos travestidos de mensageiros da felicidade.

Guarulhos, rota principal

A Asbrad ajudou a implementar no Aeroporto de Guarulhos o Posto de Atendimento Humanizado aos Migrantes, inaugurado em março de 2010. O local foi apontado pelo governo como uma das principais rotas do tráfico interno e internacional de pessoas no país. A proposta é recepcionar pessoas refugiadas, deportadas, inadmitidas nos países de destino e migrantes internos, mas poucas são as demandas no local. Numa manhã de junho passado a reportagem esteve no local para conhecer a dinâmica, mas só teve acesso a algumas histórias, contadas sem detalhes por conta do sigilo necessário. São realizados poucos atendimentos. Foram 30 em maio e 18 até dia 19 do mês passado. Nas férias, chegam a 40, como ocorreu em janeiro.

As pessoas não procuram muito a ajuda porque, em geral, são atendidas pela Polícia Federal na área restrita quando saem dos voos. Dali, apenas alguns casos são encaminhados para o posto, como os de refugiados do Haiti, Somália e da África em geral. Recebem atendimento que vai desde hospedagem nos albergues da cidade, serviço médico e demais necessidades para que restabeleçam seus direitos.

A responsável pelo posto, Raquel Brichucka, gerente técnica da Divisão de Proteção Social Especial da Prefeitura de Guarulhos, temerosa em revelar os casos, contou por alto o de um rapaz português que chegou ao Brasil com uma proposta de trabalho. Aqui, foi encaminhado para um hotel, onde já estava acertado o pagamento de sua estadia por uma quinzena. Depois disso, foi enviado para Santos (litoral sul paulista) e, de lá, para o maior terminal rodoviário do país, o Tietê, na capital paulista. Ali recebeu umas malas que deveria levar numa viagem de ônibus. Ele se negou a cumprir a ordem, e fugiu do que demorara um pouco a perceber se tratar de uma rede criminosa.

Dalila, da Asbrad, critica o rumo dado ao posto, que ajudou a implementar. A entidade cuidou do local por um ano, até 2011. Para ela, faltam investimentos e a possibilidade de acesso às pessoas, que atualmente ficam por conta da Polícia Federal na área restrita do aeroporto. A PF informa que nos últimos dois anos instaurou 120 inquéritos policiais para apuração de crime de tráfico de pessoas. E que trabalha na capacitação de seu contingente para que possa identificar situações de tráfico e para adotar as medidas investigativas adequadas. “Nos aeroportos temos policiais treinados para reconhecerem as situações de tráfico de pessoas, contrabando etc”, diz a PF, em nota.

Na sede da Asbrad, em Guarulhos, Dalila atende rapidamente à nossa reportagem. Na sala ao lado, uma jornalista italiana também interessada no tema a espera. Ela diz que é sempre procurada. Que a entidade tem 15 anos de expertise. Nossa conversa é interrompida por um telefonema. Dalila atende e a ouço falar insistentemente com alguém sobre a necessidade de encaminhar as mulheres para o atendimento ali. Depois, ela me conta que era um relato do serviço de saúde da cidade, o canal por onde as vítimas de tráfico humano mais surgem. Muitas famílias bolivianas exploradas por brasileiros.

“É um desafio”, diz ela. Fazer as pessoas chegarem ao local certo, onde encontrarão um acolhimento verdadeiro e quem sabe a abertura de portas para uma nova vida. Para Dalila, a grande política pública necessária deve prever uma casa para mulheres migrantes em situação de vulnerabilidade. “E precisamos ter um olhar muito responsável para não restringir o direito de ir e vir nas fronteiras”, encerra.

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