Familiares repudiam negativa do Estado em investigar morte de Vladimir Herzog

País se escuda na Lei de Anistia e pede à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que não receba denúncia de familiares do jornalista morto nos porões da ditadura em 1975. Provas físicas e testemunhos recentes fortelecem a versão de assassinato, não suicídio

Vlado foi morto no Doi-Codi, em São Paulo, após ter sido preso e torturado (Foto: Silvaldo Leung Vieira/Jornal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo)

São Paulo – Apesar de o país ter aprovado recentemente uma Lei de Acesso à Informação e nomeado uma Comissão Nacional da Verdade para apurar as graves violações aos direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, o Estado brasileiro continua se evadindo à responsabilidade de investigar e julgar pessoas acusadas por assassinatos políticos ocorridos durante o regime militar. Mesmo nos casos mais notórios e conhecidos.

Prova disso é a resposta do Itamaraty à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que, no último mês, pediu explicações sobre a passividade da Justiça nacional em elucidar a morte do jornalista Vladimir Herzog. Vlado, como era conhecido, perdeu a vida nos porões da ditadura, em 1975, após ter sido preso e torturado. Na época, a Justiça militar, controlada pelo regime, sustentou a versão do suicídio. Foi até hoje a única investigação realizada sobre o caso.

Os familiares do jornalista jamais aceitaram a versão oficial. Nos anos 1980 e 1990, duas novas tentativas de elucidar judicialmente a morte de Vladimir Herzog esbarraram na Lei de Anistia. No entendimento da Justiça brasileira, a legislação editada em 1979 exime de responsabilidade – e, portanto, de punição – todas as pessoas que cometeram crimes políticos durante a ditadura, fossem militares ou guerrilheiros lutando por democracia.

“Mas existe uma norma de ouro do sistema interamericano: graves violações dos direitos humanos e crimes praticados durante ditaduras são imprescritíveis”, argumenta Beatriz Affonso, diretora do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), que representa o jornalista assassinado e seus familiares perante a CIDH. “Além disso, é amplamente conhecido que a lei não anistiou os crimes de sangue.”

Em entrevista coletiva concedida hoje (21) no Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, Beatriz se disse surpresa com a resposta do Estado brasileiro à Comissão Interamericana. “Dizem que a Lei de Anistia é um obstáculo, que teria esgotado os recursos internos e por isso ninguém mais pode fazer nada a respeito”, lamentou. “Nosso descontentamento é absoluto, porque o Estado brasileiro acaba de receber uma sentença da CIDH esclarecendo que não se pode considerá-la um obstáculo.”

Essa interpretação nasceu de outra denúncia movida em 1995 pelas organizações de direitos humanos brasileiras ao sistema interamericano, esta referente às execuções e desaparecimentos durante a guerrilha do Araguaia. Ao ser acionado, naquele então, o país tirou o corpo fora com argumentos semelhantes. “É muito frustrante que, depois de 17 anos de trâmite judicial interamericano, o Estado dê a mesma resposta que deu pro caso Araguaia”, afirmou a diretora do Cejil. “O Brasil está pedindo à CIDH não admitir o caso de Vladimir Herzog.”

Provas abundantes

Agora, Beatriz Affonso acredita que o Estado brasileiro esteja tentando driblar as determinações interamericanas por meio da Comissão da Verdade, que deverá elucidar muitos casos de tortura, assassinato e desaparecimento político cometidos durante a ditadura – e sobre os quais ainda não há provas. “Mas a morte de Vlado já possui evidências suficientes para uma investigação objetiva que leve à determinação de responsabilidades”, disse. “Já se conhecem as pessoas envolvidas. Temos a lista de todos os policiais. Uma investigação é necessária para apurar exatamente quem participou da morte ou ocultou os fatos.”

O que mais revoltou os familiares e seus representantes foi o Estado brasileiro ter utilizado como justificativa para a ausência de investigações a indenização de R$ 100 mil paga à família, a aprovação da Lei 9.140/1995 (que concedeu atestados de óbitos para as vítimas da ditadura), o livro Memória e Verdade (escrito pelos parentes e amigos dos mortos e desaparecidos) e o apoio que o governo tem prestado ao Instituto Vladimir Herzog. A resposta também cita um prêmio atribuído à entidade pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

“É realmente uma resposta muito ruim, e eu gostaria de ouvir o quanto antes um pedido de desculpas do Estado brasileiro”, diz Ivo Herzog, órfão do jornalista e diretor do Instituto Vladimir Herzog. “A entidade foi criada por amigos do meu pai para celebrar sua vida e contar a história recente do Brasil. Este é um país livre, e qualquer pessoa pode montar uma entidade sem fins lucrativos. Da maneira como colocam no documento, parece que recebemos uma bênção especial do Estado.”

Ivo lembra ainda que após quase 30 anos de redemocratização, o atestado de óbito do seu pai ainda indica o suicídio como causa da morte. “Cada dia que o Estado brasileiro não emite um novo atestado que corrija essa mentira, ele está sendo cúmplice de um crime.” O filho de Herzog acredita que o governo deveria canalizar sua força política para uma mudança de postura frente aos familiares das vítimas da ditadura. Como primeiro gesto, sugere, poderia dar o verdadeiro atestado de óbito aos parentes.

“Se o Estado continuar negando-se a cumprir as determinações da comissão, é bastante provável que o caso Vladimir Herzog ultrapasse a competência da CIDH e seja enviado à Corte Interamericana de Direitos Humanos”, prevê Beatriz Affonso, diretora do Cejil. Os representantes da família do jornalista têm um mês para contestar a argumentação do Brasil.

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