Comissão da Verdade não admite, mas terá foco em crimes da ditadura

Os integrantes da Comissão da Verdade garantem ter total autonomia e consideram que não há sentido em falar de crimes da resistência à ditadura (Foto: Roberto Stuckert Filho. Presidência) Brasília […]

Os integrantes da Comissão da Verdade garantem ter total autonomia e consideram que não há sentido em falar de crimes da resistência à ditadura (Foto: Roberto Stuckert Filho. Presidência)

Brasília – “Não falo mais. A partir de hoje, é só trabalho”, afirmou, lacônico, Paulo Sérgio Pinheiro após tomar posse como membro da Comissão Nacional da Verdade, nesta quarta-feira (16). Os sete integrantes do grupo que deverá esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 começaram a trabalhar imediatamente depois da solenidade. A primeira reunião foi realizada no Palácio do Planalto, com a presença dos ministros da Casa Civil, Justiça e Advocacia-Geral da União, e serviu apenas para delinear a estrutura de trabalho do colegiado.

“Foi uma reunião essencialmente burocrática”, declarou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e coordenador da Comissão da Verdade, Gilson Dipp. O magistrado garantiu que a presença de autoridades do governo não influenciou – nem influenciará – os trabalhos do grupo. “Somos uma comissão de Estado e não estamos subordinados a ninguém”, asseverou. “Temos a mais ampla liberdade de trabalhar conforme nossas consciências e em obedecimento à lei.”

De acordo com Dipp, as prioridades da Comissão serão definidas na próxima reunião, marcada para segunda-feira (22). Na ocasião também deverão começar a precisar o conceito de “graves violações aos direitos humanos”, que norteará os trabalhos do grupo e que tem suscitado controvérsias. Afinal, os membros analisarão os crimes cometidos apenas pelos agentes do Estado ou também pelos militantes da esquerda? “Vamos investigar aquilo que seja efetivamente grave: desaparecimento, tortura, morte. A comissão não tem como fazer interpretações subjetivas. Temos de cumprir a lei.”

No entanto, algumas declarações anteriores permitem vislumbrar alguns dos caminhos que possivelmente serão trilhados pela apuração. “Os militantes [de esquerda] não tiveram como esconder seus crimes. Não há nenhuma queixa de familiares de mortos pelos militantes dizendo que não sabem onde estão seus parentes”, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão da Verdade, lembrando que, se não há ocultamento, não há o que investigar.

O período estipulado pela lei – que determina a investigação dos abusos cometidos entre 1946 e 1988 – também deve fazer com que a Comissão da Verdade escolha mais facilmente seus focos de atuação. “É um período tão longo que muito provavelmente nós vamos focar mais na ditadura”, ocorrida entre 1964 e 1985. “Porém, não vamos, evidentemente, recusar pistas que possam nos levar a desaparecidos políticos do outro período autoritário.”

Dor e incompletude

Vítimas da repressão e familiares de mortos e desaparecidos políticos durante o regime militar também marcaram presença na cerimônia de posse da Comissão Nacional da Verdade. E exaltaram a instauração do grupo. “A dor é muito forte”, comentou Matheus Guimarães, sobrinho de Honestino Guimarães, militante de esquerda cujo paradeiro permanece desconhecido desde 1973. “É como ter uma biografia com páginas em branco. Dá um sentimento de incompletude.”

Matheus resume a importância da elucidação dos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura misturando sua vida com a trajetória da democracia brasileira. “Ao passo que eu conheço a história do meu tio, eu conheço também minha própria história. E ao passo que eu conheço minha própria história, a sociedade brasileira conhece também sua história”, argumenta. “Esperamos que nossa dor e incompletude seja sanada pelos trabalhos da Comissão.”

Ana Maria Freire, viúva do pedagogo Paulo Freire – que foi perseguido e preso pela ditadura –, comemorou o início dos trabalhos da Comissão da Verdade como um alento para quem sofreu com a repressão. “Não são apenas sete pessoas estudando processos e documentos para dizer quem matou, quem torturou e quem morreu”, analisou. “O pano de fundo é a possibilidade do Brasil ter a democracia que merece.”

Essa mesma democracia é festejada pela ex-presa política Ieda Seixas, que dividiu cela com a hoje presidenta Dilma Rousseff, viu toda sua família ser colocada atrás das grades e seu pai assassinado nos porões da ditadura. “O custo foi muito alto, mas valeu a pena”, diz sobre a sensação de presenciar a instalação do grupo que investigará, entre outros casos, o seu.

Punições

“Gostaria que os responsáveis fossem punidos, mas criaram uma Lei de Anistia em que o próprio Estado se anistiou”, lamenta. “Eu era considerada uma infratora, mas os agentes do Estado não. Foram covardes. Agiram em nome do Estado e até hoje têm medo de assumir o que fizeram.”

Todos os integrantes da Comissão da Verdade negaram a possibilidade de que suas investigações acabem originando processos criminais contra pessoas que serão acusadas por tortura, desaparecimentos e assassinatos. “Pelos termos da lei, hoje, não”, precisou o ministro do STJ Gilson Dipp. E Maria Rita Kehl completou: “A presidenta Dilma foi muito clara: a Lei de Anistia não está sendo contestada, e a Lei de Anistia anistiou os dois lados.”

Com ou sem punições, de acordo com o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, as investigações possivelmente serão um marco na história do Brasil. “O Estado brasileiro reconhece que agentes públicos violaram os direitos humanos. Essa é a lei, e temos que se ater aos termos da lei”, analisou. “Se o Estado sendo posto como infrator dos direitos humanos, nós vamos necessariamente reconstruir a história.”