Impedir desmonte da TV Cultura é luta suprapartidária, dizem ativistas

Crise se agrava pela concessão de horários na programação para grupos privados, como o jornal Folha de S. Paulo e revista Veja, descaracterizando o caráter público da emissora

O encontro decidiu pela ampliação do movimento em prol da TV pública do estado de São Paulo (Foto:Barão de Itararé)

São Paulo – Jornalistas, sociólogos, coletivos em prol da liberdade de expressão e ex-funcionários reuniram-se ontem (3), na sede do Sindicato dos Engenheiros do Estado, no centro da capital, para debater as causas do sucateamento da TV Cultura. O encontro decidiu pela ampliação do movimento em prol da TV pública do estado de São Paulo. O objetivo principal, segundo os participantes, é a reversão do quadro de sucateamento técnico e de conteúdo, agravado na atual gestão de João Sayad, para uma programação plural e diversificada, mantendo a essência de uma televisão sem fins comerciais.

Mais de mil demissões desde 2004 (150 só em janeiro passado), extinção de programas, empobrecimento de material próprio e entrega da programação a meios de comunicação privados, como o jornal Folha de S. Paulo e a revista Veja, são alguns dos vários efeitos do processo de desmonte da TV Cultura e das emissoras públicas de rádio, num processo iniciado há alguns anos. 

Apesar de a atual crise ameaçar o patrimônio paulista, não é a primeira vez que a Cultura esteve prestes a ruir, como lembrou o sociólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP) Laurindo Lalo Leal Filho. Um desses momentos ocorreu ao final do mandato do então governador Paulo Maluf (1982), quando quase toda a diretoria foi destituída, fazendo com que sobressaísse a tendência privatizante e os interesses do governo na programação da emissora.

“As crises são continuadas”, observou Lalo. No entanto, ele destacou o poder da produção própria da programação infantil que já levou a Cultura a registrar inéditos dois dígitos de audiência ante os “enlatados” trazidos do exterior pelas emissoras comerciais. “Até o Silvio Santos começou a ficar preocupado por perder uns pontinhos para a Cultura”, disse.

Entretanto, Lalo, “antigo ex-funcionário” da Fundação Padre Anchieta (mantenedora da TV Cultura), alertou para a iminência de um cenário pior à vista. “Costumávamos dizer que a Cultura era a televisão mais lida, porque ainda que não desse muita audiência era muito retratada na mídia impressa. Hoje, se a coisa continuar neste pé, nem lida será, porque a mídia toda está sendo cooptada”, lamentou. A formação de jovens para o trabalho no serviço público de radiodifusão é, segundo ele, uma das questões que precisam ser debatidas para o fortalecimento da TV pública, o que ainda não ocorreu com a intensidade que deveria.

Na opinião do jornalista Luis Nassif, a Fundação padre Anchieta passa por longos períodos sem processos de crítica interna, o que também contribui para o desmonte da emissora. “A cada gestão é nítido o desmando, ocasionado por briga política ou por pessoas incapacitadas em postos-chave”, disse.

O jornalista, que apoia a organização de um movimento suprapartidário para barrar o desmonte da Cultura, enfatizou a “submissão” do ex-presidente da Padre Anchieta, Paulo Markun, à administração do ex-governador José Serra (PSDB). Postura que teria, segundo ele, se repetido na relação entre o atual gestor e o governador Geraldo Alckmin (PSDB). “O negócio com a Folha e a Abril é uma total falta de cultura”, ironizou Nassif.

O editor da revista Fórum e presidente da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom), Renato Rovai, reforçou: “Não é à toa que Folha e Veja têm milhares de assinaturas feitas pelo governo.”

Coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e secretária de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti se disse “perplexa” em razão de o estado de São Paulo estar na contramão de discussões de grande importância, como o marco regulatório das comunicações. “No momento em que é preciso ter um instrumento público que garanta liberdade de expressão para a população, o espaço se fecha. Precisamos debater neste momento o que queremos da comunicação pública deste país”, disse.

Líderes da Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa de São Paulo presentes no ato confirmaram a realização de uma audiência pública para levar a discussão ao espaço parlamentar. Houve tentativa de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 2003 para discutir os recorrentes problemas da emissora, mas a iniciativa foi barrada e engavetada pela liderança do partido de situação.

O deputado Simão Pedro (PT), presidente da comissão e também membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, lembrou que a política de desmonte da Cultura se assenta nos recursos concedidos pelo governo. “Enquanto o governo direciona cada vez menos recursos, o orçamento vindo do setor privado cresce, o que cria o déficit que se tem hoje”, disse. Resultado disso, segundo o deputado, é que a “corda arrebenta para o lado mais fraco” – os trabalhadores.

Uma das demitidas é Maria Amélia Rocha Lopes, ex-diretora do programa “Manos e Minas”, dirigido ao público jovem das periferias. Enquanto ela estava à frente da atração, a presidência da emissora decidiu que o programa seria “descontinuado” por não corresponder mais ao “perfil desejado”. Após campanhas com forte adesão nas redes sociais pelo retorno do programa, Sayad recuou da decisão.

“Eles não contavam com o fato de a população de São Paulo ter interesse em ver este tipo de programa, que mostrava o caldeirão cultural da periferia. Nós tínhamos convicção de que fazíamos algo de relevância”, disse Maria Amélia. Embora o “Manos e Minas” continue na grade da programação, os funcionários que defenderam a volta do programa foram demitidos. “Meu testemunho é para estimular as pessoas a fazerem acontecer. Todo mundo reclama de o governo ser assim ou ser assado, mas depois que mostramos o que queríamos, ele teve de engolir a gente.”