Um quebra-cabeça para reconstruir a história das ditaduras

Encontro entre hoje e domingo em Porto Alegre vai analisar as várias dimensões e entraves para reconstruir a história das ditaduras, da luta para derrubá-las e dos esforços para identificar e punir violadores dos direitos humanos

Jair Krischke, fundador e coordenador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos: bilhete no pescoço do tigre (Foto: Paulo Hebmüller)

Rio Grande do Sul –  No final do ano passado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) entregou à Justiça da Argentina um relatório até então mantido em sigilo contendo 130 fotos de cadáveres encontrados no litoral uruguaio na década de 1970. De acordo com a comissão, as fotos são a prova cabal dos chamados voos da morte, nos quais os militares argentinos jogavam ao mar presos políticos com as mãos amarradas – em geral sedados, mas ainda vivos. Como as águas não respeitam os traçados dos mapas, muitos cadáveres acabaram aparecendo nas praias do vizinho Uruguai, cujo governo passou a investigar a “invasão” dos mortos.

O caso foi abafado quando a ditadura da Banda Oriental do Rio da Prata concluiu que os carrascos eram seus colegas fardados da ditadura da outra margem. Os documentos agora serão usados nos processos sobre crimes cometidos por militares da Escola de Mecânica da Marinha – a trágica Esma, sigla em espanhol para Escuela de Mecánica de la Armada, o mais conhecido centro de horrores do regime nascido do último golpe argentino, que durou de 1976 a 1983.

“A imprensa deu destaque, com razão, para a entrega desses arquivos”, comenta Jair Krischke, fundador e coordenador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), com sede em Porto Alegre. De sua escrivaninha, na antessala do pequeno conjunto que o MJDH ocupa num prédio comercial do centro da cidade, o coordenador aponta para a sala maior, isolada apenas por divisórias simples, e observa: “Eu tenho aqui o mesmíssimo material.” É um acervo que poderia alimentar processos em todo o cone sul.

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Enquanto ações contra agentes da ditadura não prosperam no Brasil, a Krischke resta admitir que inveja a Justiça da Argentina. Lá, torturadores, executores e até ex-presidentes não mais conseguem viver à sombra de uma anistia autoconcedida. No país vizinho, o militante gaúcho inclusive já testemunhou em processos que investigam o desaparecimento de dois cidadãos ítalo-argentinos alcançados no Brasil em 1980 pela Operação Condor – “a transnacional do terror que unia os generais do cone sul no desrespeito às fronteiras dos países e do direito internacional”, como a define o jornalista Luiz Cláudio Cunha, profundo conhecedor do tema. Os órgãos repressivos das diferentes ditaduras atuavam em colaboração para capturar ilegalmente os militantes que atuavam ou haviam se refugiado em outros países. 

“A imprensa deu destaque, com razão, para a entrega desses arquivos”, Jair Krischke
(Foto: Paulo Hebmüller)

A Justiça dos hermanos tem levado aos tribunais os responsáveis pelo terrorismo de Estado desde que, em 2005, a Suprema Corte do país declarou inconstitucionais as leis de “Obediência Devida” e “Ponto Final”, promulgadas por pressão dos militares – para garantir a própria impunidade – já no governo civil de Raúl Alfonsín (1983-1989). Os documentos entregues pela OEA vão reforçar esse trabalho. O Uruguai, como se verá adiante, tem seguido o mesmo caminho. No Brasil, a decisão de 2010 do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei da Anistia vale para os crimes cometidos por agentes do Estado ajuda a barrar iniciativas como a do Ministério Público Federal de tentar abrir ação contra o coronel da reserva Sebastião Curió pelo sequestro de cinco integrantes da guerrilha do Araguaia. 

Ferida que não fecha

Vários dos militantes que têm patrocinado – ou tentado patrocinar – ações do gênero no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai e Bolívia estarão reunidos entre hoje (30) e domingo (1º) na capital gaúcha para o 5º Encontro Latino-Americano por Memória, Verdade e Justiça, cujo tema é “Cumprir com a verdade”. Que o encontro ocorra no aniversário de um dos pioneiros golpes militares a varrer o cone sul nas décadas de 1960 e 70 – o brasileiro – não é coincidência. As quatro edições anteriores, realizadas nos países vizinhos, também “celebraram” datas semelhantes.

Parlamentares, como os brasileiros Chico Alencar e Luiza Erundina; procuradores, como o argentino Miguel Angel Osorio e a uruguaia Ana Maria Telechea Reck; historiadores, jornalistas e ativistas como Victória Grabois Olímpio, do Grupo Tortura Nunca Mais, participarão dos debates na Assembleia Legislativa gaúcha. Entre eles também estará a bioquímica Macarena Gelman, filha de Marcelo Gelman e María Claudia García, sequestrados em Buenos Aires em agosto de 1976. Marcelo foi assassinado em outubro, mas María Claudia, às vésperas de completar 20 anos de idade e grávida de sete meses quando sequestrada, foi levada para o Uruguai num dos voos da Condor poucos dias antes de dar à luz.

A praxe dos algozes era manter vivas as prisioneiras grávidas até que tivessem os bebês para entregá-los a casais sem filhos ou que quisessem mais uma criança – casais em que, geralmente, os maridos eram militares ou civis de alta classe simpatizantes das ditaduras. Havia até listas de espera de potenciais pais adotivos. Nascida provavelmente no início de novembro, Macarena sabe que há registros de que foi vista com sua mãe pela última vez no dia 22 de dezembro. Em 14 de janeiro de 1977 foi entregue a um policial uruguaio e sua esposa em Montevidéu. Depois de ter a filha arrancada de seus braços, María Claudia foi assassinada. Seus restos, ao contrário dos de Marcelo, jamais foram localizados.

Macarena só soube de sua verdadeira história no início de 2000, quando a mãe adotiva resolveu contá-la, poucos meses após a morte do marido. Aos 23 anos, nasceu para uma segunda vida, na qual tomou conhecimento de que seu avô paterno, o consagrado poeta argentino Juan Gelman, a procurava incansavelmente. Passou então a se inteirar dos temas ligados às ditaduras, aos desaparecidos e à Operação Condor, e adotou os sobrenomes dos pais biológicos. Ela foi o 67º caso de filhos de militantes que tiveram sua identidade recuperada, de acordo com a organização argentina Avós da Praça de Maio. Em 2011, esse número chegou a 105. As Abuelas estimam que cerca de 500 bebês foram sequestrados pelos militares.

O “Caso Gelman”, que será tema da primeira mesa de debates do encontro em Porto Alegre, esteve no centro da decisão tomada em outubro do ano passado pelo parlamento uruguaio de declarar que os crimes cometidos durante a ditadura militar no país (1973-1985) são de lesa-humanidade e, portanto, imprescritíveis. No último dia 21 de março, o presidente e ex-guerrilheiro José Pepe Mujica, ao lado do presidente da Suprema Corte e com Macarena e Juan Gelman nas galerias, leu no Congresso Nacional uma declaração reconhecendo oficialmente a responsabilidade do Estado pelo desaparecimento de María Claudia.

O chamado “ato de perdão” cumpriu sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que condenara o país no caso – é a mesma corte, por sinal, que condenou o Brasil no caso da guerrilha do Araguaia, sustentando que a Lei da Anistia é incompatível com as convenções internacionais e não pode impedir a investigação dos crimes da ditadura brasileira. “Custou-me muito me apropriar de minha história”, disse Macarena, numa entrevista ao diário portenho La Nación em 2010. Ela ainda não sabe o que de fato aconteceu com sua mãe no cárcere depois que as duas foram separadas. Sobre esse desconhecimento, afirmou: “Tenho essa ferida que talvez não feche nunca”.

Painel fraturado

O encontro de Porto Alegre vai analisar as várias dimensões e entraves para reconstruir a história das ditaduras, da luta para derrubá-las e dos esforços para identificar e punir violadores dos direitos humanos. É como montar um quebra-cabeça, compara Jair Krischke, no qual pequenas frações e peças vão se juntando para formar “um painel ainda todo fraturado”. Para o militante, somente a abertura de todos os arquivos vai permitir a recuperação do quadro geral.

Os debates vão ocorrer em meio ao tiroteio sobre a criação da versão brasileira da Comissão da Verdade, alvo de constantes críticas por parte dos militares. O coordenador do MJDH tem suas próprias ressalvas ao projeto, entre elas, o fato de que nomear apenas sete integrantes e 14 auxiliares para investigar um período de mais de quarenta anos “é muito pouco”. “O texto aprovado está longe de ser aquele pelo qual lutamos, mas de qualquer sorte é um avanço para o país mais atrasado em termos de investigação das ditaduras na região”, afirma.

“A Comissão da Verdade vai ter de ‘pendurar o bilhete no pescoço do tigre’: bater na porta dos quartéis e exigir os documentos – e não me venham com a história de que eles foram destruídos, porque isso é mentira”, diz Krischke. No Rio Grande do Sul, o ex-governador Amaral de Souza (1979-1983) chegou a promover uma “queima pública” das fichas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) estadual. Porém, nos arquivos do MJDH existem documentos oriundos do extinto departamento com anotações posteriores à incineração. “Não é fantástico isso? Se essas fichas foram queimadas, como aparecem com atualizações? Esses arquivos existem, e eu tenho aqui a prova”, aponta.

De documentos o coordenador do MJDH entende. As estantes da sala maior da sede do movimento abrigam uma enorme quantidade de caixas-arquivo de plástico cujo conteúdo vem sendo catalogado e sistematizado por pesquisadores e professores. A intenção é que esse acervo dê vários frutos, como o livro bilíngue (em português e espanhol) A história do Movimento de Justiça e Direitos Humanos – Onde a esperança se refugiou e uma exposição multimídia com o mesmo tema. Aproximadamente 2 mil vítimas de perseguição em seus países conseguiram exilar-se e salvar sua vida com o auxílio do MJDH. A maioria delas deixou depoimentos por escrito na sede porto-alegrense. Algumas estão sendo contatadas para gravar entrevista em vídeo, outra vertente do projeto de dar cada vez mais a conhecer a riqueza do material armazenado ao longo das últimas décadas.

Para Krischke, é um esforço que significa contar parte da história política da América Latina. “Esse acervo não tem sentido se não for acessível ao público. Ele não existe para o nosso deleite”, diz. Outra iniciativa prevê higienizar e digitalizar os documentos obtidos pelo MJDH para possibilitar sua consulta pela internet. Todos esses projetos por enquanto estão exatamente na fase de projetos, e ainda dependem da captação de recursos. 

Trilhas de contrabando

Se o sucesso na obtenção de financiamento permitir, será mais fácil ao público ter acesso, por exemplo, ao material sobre os corpos que “brotaram” no litoral do Uruguai – os primeiros documentos chegaram ao MJDH porque dois cadáveres foram encontrados nas areias de praias do extremo sul gaúcho em abril de 1978. No mesmo ano se deu outro caso emblemático para as ditaduras do continente: o sequestro, em Porto Alegre, dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz. Membros do Partido pela Vitória do Povo, eles foram vítimas de uma das mais conhecidas ações da Operação Condor. Para prendê-los, os agentes do país vizinho contaram com a inestimável colaboração de policiais do DOPS do Rio Grande do Sul.

A denúncia do sequestro, feita pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha e pelo fotógrafo J.B. Scalco, então da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, evitou que Universindo, Lílian e os filhos dela – Camilo, então com oito anos, e Francesca, de três – se somassem aos cerca de 150 uruguaios “desaparecidos” em operações do gênero, a maioria realizada na Argentina. Eles foram os únicos a sobreviver, e a repercussão do caso de Porto Alegre transformou-o no último sequestro praticado pelo Uruguai. Mesmo assim, os dois militantes não escaparam da tortura e passaram cinco anos presos em seu país. Krischke acompanhou a libertação deles, no final de 1983, em Montevidéu. A Justiça uruguaia reabriu o caso no final de fevereiro, e o próprio Cunha poderá ser chamado a testemunhar.

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Krischke atuava na defesa de perseguidos políticos ao lado dos amigos (Foto de arquivo)

Muito antes desse sequestro, Krischke e seus companheiros já atuavam na defesa de perseguidos políticos do cone sul. Quem procurava o Bazar Carioca, a loja de miudezas mantida pela sua família numa área de comércio popular no centro de Porto Alegre, dizendo a senha – “Con los saludos de La Virgen de Guadalupe” – sabia que encontraria amigos dispostos a percorrer antigos caminhos de boiadas e velhas trilhas de contrabandistas para cruzar fronteiras e obter refúgio. Essa rede solidária incluía ordens religiosas, colégios e outros locais de esconderijo que, como conta o jornalista José Mitchell no livro Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar (RBS Publicações, 2007), em boa parte o militante dos direitos humanos ainda hoje não revela.

A criação formal do MJDH, em março de 1979, permitiu que houvesse maior amparo jurídico para acionar instâncias como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e assim socorrer vítimas do arbítrio fardado no continente quando as trilhas clandestinas passaram a ser arriscadas demais. Uma das “operações” emblemáticas foi o resgate do físico uruguaio Cláudio Benech, que estava preso em seu país, mas teve autorização para passar o ano novo com a família. Krischke e alguns companheiros conseguiram resgatar Benech e seus familiares e levá-los em segurança até a fronteira com o Brasil, após viajarem durante toda a madrugada de 1º de janeiro de 1981. 

A cruz e a metralhadora

Outro episódio envolvendo o país vizinho marcou a história do MJDH. Em 1980, uma missão das Nações Unidas encarregada de investigar a situação dos direitos humanos no Uruguai não obteve autorização do governo para ouvir os familiares de desaparecidos. Contatos com o movimento gaúcho permitiram que quase 30 familiares viajassem de ônibus a Porto Alegre, onde se reuniram no Sindicato dos Jornalistas, contaram suas histórias e forneceram documentos. Os depoimentos foram entregues formalmente por Krischke à Ordem dos Advogados do Brasil e aos delegados da ONU.

Aos 73 anos, Krischke se mantém incansável na luta que iniciou décadas atrás, até porque as violações de direitos humanos seguem corriqueiras na atualidade – no que, aliás, não negam a herança de uma longa história de desrespeitos e omissões no País. Pavimentar um caminho diferente no futuro exige encaixar as peças do quebra-cabeça, defende o fundador do MJDH. Ele reconhece que não é tarefa fácil. Para ficar apenas nos desafios da Comissão da Verdade, não basta encontrar documentos; é preciso saber decifrá-los. “Não temos essa cultura que os argentinos e uruguaios criaram de olhar para um documento e saber o que ele significa, saber linkar uma coisa com a outra”, lamenta.

Perguntado sobre como tantos papéis “quase” secretos chegaram e continuam chegando aos alentados arquivos do MJDH, Krischke evoca o bispo mexicano Dom Sergio Méndez Arceo, falecido em 1992 – de quem se dizia que carregava um crucifixo numa das mãos e uma metralhadora na outra. “Quando lhe faziam essa pergunta, Dom Sergio respondia solenemente: ‘no se puede decir’. É o que digo eu”, comenta, num sorriso, o guardião de tantos testemunhos capazes de dizer muito a muita gente.

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