Moradora de área da várzea do Tietê luta para legalizar 17 bairros em São Paulo

Vítima de enchentes, Zélia Andrade deixou a própria casa para salvar moradores durante as cheias que duraram 60 dias em seu bairro, na zona leste da capital paulista

Defesa de atingidos por enchentes levou Zélia a aprofundar militância na comunidade. Ela teve a própria casa alagada em 2010 (Foto: Rede Brasil Atual)

São Paulo – Era sábado, 23 de janeiro de 2010, e Zélia Andrade aproveitava para descansar um pouco à tarde. Ao acordar foi surpreendida com a água que invadia sua casa de um cômodo e banheiro e já se aproximava da altura do colchão. “Que estranho, nem choveu”, pensou. Perplexa com a situação, levantou-se e foi saber o que acontecia em seu bairro, a Chácara Três Meninas, uma das dezenas de comunidades que cresceu às margens do rio Tietê, na capital paulista.

Em uma breve caminhada descobriu que o mesmo se repetira em quase todas as casas da região, não só em seu bairro. Naquele início de ano, milhares de pessoas do distrito de Jardim Helena, zona leste da capital paulista, tiveram as casas inundadas. Alguns bairros, começaram a ter problemas desde 8 de dezembro de 2009. O pior, lembrou a moradora, é que a situação não durou um ou dois dias, nem foi e depois retornou. A população ficou cerca de 60 dias com móveis, roupas, documentos e alimentos submersos. A situação persistiu até março de 2010. 

A principal desconfiança dos moradores é de que as cheias tenham ocorrido devido à abertura de comportas de represas em cidades vizinhas à capital e mais próximas da nascente do rio Tietê, o que explicaria o fato de as enchentes ocorrerem em dias sem chuva. Os moradores cogitam que, para evitar o alagamento da marginal Tietê, em São Paulo, o governo estadual preferiu inundar bairros da periferia.

Muitas outras enchentes atingiram a região e exigiram desprendimento até mesmo da saúde de Zélia, o que resultou em anemia e depressão, mais tarde. Desde a enchente de 2010, Zélia tornou-se uma espécie de assessora de imprensa da comunidade, recebendo jornalistas, explicando a dureza do dia a dia em uma comunidade e exigindo ações do poder público. Além da veia comunicativa, recém-descoberta, a líder comunitária se desdobrava para conseguir donativos às famílias que perderam quase tudo nas cheias.

Durante semanas, Zélia viveu ao lado dos moradores abrigados em uma escola por iniciativa dela. “Não tínhamos para onde ir com adultos, crianças e até animais. Quebramos o cadeado da escola e entramos para dar alento àquelas pessoas.” Nessa tarefa, foi vítima da truculência da prefeitura. “Porque organizamos as famílias atingidas e reivindicamos atendimento do poder público, fomos recebidos pela polícia e guarda civil metropolitana com spray de pimenta na sede da prefeitura e na subprefeitura de Itaim Paulista”, recordou. Ela também começou a sofrer ameaças, exigindo seu distanciamento do movimento de moradores.

Parte da população atingida pelas cheias não teve para onde voltar e ficou efetivamente sem casa. As pessoas decidiram ocupar um terreno vazio, cujo dono tinha dívida “impagável” com a prefeitura. Zélia foi junto e acionou a imprensa para expor o destino dos desabrigados pelas chuvas e órfãos do poder público. Logo, prefeitura e proprietário se alinharam e veio a reintegração de posse do terreno. “Passamos a sofrer com a truculência da polícia que multava o pessoal da ocupação por ficar no carro sem cinto de segurança, já com o carro estacionado”, criticou. Novamente, dezenas de famílias perderam o teto.

Segundo a líder comunitária, parte das pessoas que tiveram casas alagadas recebeu auxílio-aluguel de R$ 300 da prefeitura e assinou um termo abrindo mão das antigas residências, que foram demolidas para dar lugar ao parque linear Várzeas do Tietê, projeto ainda no papel. Número significativo de moradores voltou a habitar áreas de risco diante da impossibilidade de manter o aluguel com o benefício recebido. Outro grupo mudou para casa de parentes e outras cidades limítrofes com a capital. 

A falta de postos de saúde e atendimento especial da prefeitura depois das enchentes rendeu outros problemas à população e desafios a Zélia e militantes, que se desdobraram para conseguir remédios, principalmente para as crianças doentes. Embora, a prefeitura tentasse esconder, os moradores denunciaram diversas mortes por leptospirose, que ocorria por contato com água das chuvas, contaminada com urina de ratos.

“Chegamos ao ponto de mentir em postos de saúde, dizendo que nós é que estávamos mal, para conseguir remédio para pessoas acamadas e sem condições de passar horas em um hospital”, revelou. Outras vezes, fechou os olhos para situações degradantes e até de tráfico de drogas para ficar ao lado de crianças doentes. “Não podia obrigar familiares a mudar a vida deles, então fazia de conta que não via nada e cuidava só da criança doente.”

Enchente

A casa da líder dos moradores da Chácara Três Meninas também ficou em situação difícil. Com água retornando pelo encanamento por muitos meses,  ela teve de buscar ajuda na casa de amigos, em um local  ainda mais próximo do rio Tietê, para tomar banho.  Mas não perdeu a alegria de ter sua própria casa, nem mesmo quando encontrou uma cobra em seu quintal, durante as inundações. “Eu ergui paredes, chapisquei, bati massa. A casa é meu sonho realizado de ter um canto só meu”, identificou.

A luta constante dos moradores, antes e depois do período de enchentes, é pela legalização e urbanização de cerca de 17 comunidades que ficam às margens do rio Tietê. “Tirando os 50 metros de margem, queremos que o poder público garanta a permanência dos moradores e urbanize a área”, reivindicou. “A prefeitura tira as pessoas de forma irresponsável, mas mantém as empresas”, criticou.

Ela avalia que o próprio Estado deixa as pessoas em situação miserável ao proibir a entrada de materiais de construção nas áreas de várzea, depois das cheias de 2009. “Sem poder reformar a casa, a precariedade só vai aumentando”, sentenciou. “Aí vem a prefeitura e diz que o lugar é ruim, miserável, de risco. Mas foi ela mesma que produziu.”

Encontro com a miséria

O sonho da casa própria levou Zélia a conhecer pela primeira vez uma favela, enchentes e a militância. Tudo ao mesmo tempo, a partir de 2000, quando mudou para a Chácara Três Meninas.

Natural do estado da Bahia, ela conta que cresceu sem dificuldades financeiras, ao lado dos pais, nove irmãos e os avós. Era neta de um misto de fazendeiro e curandeiro. O avô plantava cacau, mantinha a família de forma simples mas sem restrições e de quebra ainda cuidava da saúde dos habitantes dos arredores na pequena Ibirapitanga, prescrevendo ervas e benzendo a população. A situação mudou com a morte do patriarca, que levou à desarticulação financeira da família. O aparecimento de vassoura-de-bruxa, doença que ataca plantações, tratou de colocar uma pá de cal na estabilidade familiar.

Com 19 anos, a militante decidiu tentar a vida em São Paulo. Embora vivesse de forma simples, trabalhando em oficinas de confecções e atividades comerciais, ela nunca tinha passado por uma enchente, nem visto de perto a vida em uma favela. “Eu não conhecia favela, violência, pobreza extrema…”, lembrou. Foi um choque lidar com a desolação da população mais carente da periferia de São Paulo e fazer parte dela. “A violência que eu via todo dia me deixava paralisada.”

Mais de 60 dias de alagamento

A decisão de trabalhar na articulação dos moradores e reivindicar melhores condições para as famílias surgiu pelo temor do futuro dos sobrinhos. “Eu olhava aquela criançada exposta a tanta coisa ruim, não queria que fosse assim”, desabafou. “Quem não mora na favela tem uma visão distorcida da realidade. É comum dizer que o jovem é vagabundo, mas é difícil viver jogado nas ruas, sem oportunidade de estudar, trabalhar e ter lazer.”

As cheias na região, no fim de 2009, deram um impulso maior à militância de Zélia. Mas também levaram sua saúde. “Eu vacilei. Queria tanto trabalhar para ter uma vida melhor e cuidar dos outros que esquecia de comer”, descreveu. A displicência levou à anemia e à depressão. “A gente erra ao achar que é superpoderosa, que pode tudo. Não é assim. A gente precisa de cuidado próprio e de ajuda das pessoas”, ensina.

Hoje, ao lembrar dos anos que passou sem emprego devido ao estado anêmico e depressivo, ela avalia que faltou preparo para ser militante. “É preciso muito preparo político, físico, mental e psicológico, porque você tem de dar suporte a pessoas que sofrem, passam necessidades, são vítimas de violência física e moral e vivem em condições sub-humanas. Eu achava que podia tudo: resolver a vida das pessoas e deixar a minha de lado”, disse, em tom de autocrítica.

A quem passa por depressão, ela avisa que é preciso buscar ajuda, principalmente psicológica. “É preciso falar e ser ouvida. Colocar as dores para fora e recomeçar”, ensinou.

Desafio de ser humana

Depois do baque de se deparar com a miséria da periferia de São Paulo e o quadro de violência que vem junto, a líder comunitária se reergue com planos audaciosos. Quer estudar jornalismo “para denunciar o descaso com a periferia”, tornar-se empreendedora solidária com uma loja de artesanatos e alfabetizar a irmã. Recentemente, a militante que tem 41 anos descobriu que uma de suas irmãs, de 39, não sabe ler, nem escrever. O que a incomodou muito. “Ela foi preencher uma ficha de emprego, um bom emprego, e não conseguia. Mas não disse nada para ninguém”, contou.

Zélia inscrevou a irmã em um programa de alfabetização. Mas a mana teve medo de ir sozinha à noite. Para resolver, ela a acompanha toda noite à escola e aguarda até o final da aula. “Meu sonho é ver a minha irmã indo sozinha à escola e depois levando outras pessoas. Assim eu penso o mundo, você é ajudado por alguém, ganha consciência sobre a vida e as necessidades políticas, passa a caminhar sozinho e depois ajuda outra pessoa a caminhar, a mudar… Lembro de um muçulmano que me disse: ser humano é aquele que ajuda outro ser humano. Penso e vivo assim, na busca de ser humana”, confessou. “Se tiver dez pessoas batendo e uma apanhando, sempre vou entrar na briga.”

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