Inabilidade do poder público de controlar recursos ‘criminaliza’ ONGs

Especialistas veem problemas, mas contestam acusação de que entidades são 'facilitadoras' de desvios e mau uso do dinheiro público. E acusam deficiência do Estado pela falta de transparência

São Paulo – Mau uso do dinheiro público, queda de ministros, captação de recursos para fundos de partidos políticos e desvios de verba. Todas essas denúncias costumam ter alvo certo por parte da velha mídia: as organizações não governamentais (ONGs). Envolvidas em turbulenta série de acusações, essas entidades veem seu trabalho e importância sendo colocados constantemente sob suspeição. Em sua defesa, as ONGs alertam para o envolvimento de interesses políticos nos trabalhos que desenvolvem, ao lado da inabilidade do poder público para controlar recursos. O temor maior é de que as acusações as “criminalize” de uma forma geral e, como consequência, o governo dificulte o acesso a recursos públicos essenciais.

A discussão acerca das ONGs começou em setembro, quando Pedro Novais, titular do Ministério do Turismo, pediu demissão após denúncias de repasses irregulares a entidades cadastradas na sua pasta. De lá para cá, Orlando Silva, do Esporte, e mais recentemente Carlos Lupi, do Trabalho, viram-se envolvidos em suspeita de irregularidades na formação de contrato com ONGs.

Postas involuntariamente na berlinda, entidades de todo o Brasil que não tiveram seus nomes envolvidos nas denúncias rechaçam as recentes decisões do governo – como a suspensão do repasse de recursos indiscriminadamente, em outubro – e denunciam a irreponsabilidade das entidades envolvidas. No entanto, especialistas do chamado terceiro setor concordam que o país tem ainda várias ONGs “de fachada”, ou seja, entidades criadas apenas para desviar recursos públicos.

Para Lucia Bludeni, presidente da Comissão de Direitos do Terceiro Setor, da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), os recentes escândalos envolvendo ONGs são “casos de polícia. Fraudes arquitetadas com o fim de repassar dinheiro indevidamente”.

Vera Masagão, coordenadora-executiva da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) afirma que as ONGs não são reconhecidas como tais – são apenas CNPJs, diz. “ONGs que são criadas para desviar recursos e favorecer grupos políticos”, acrescenta.

“É preciso ter controle claro, porque tem gente desviando, fazendo associação só pra receber dinheiro via convênio, que foi o que aconteceu nas denúncias. Essa é a acusação: não tem ONG nenhuma, é só fachada.  Esses escândalos envolvem somente e tão somente o poder”, afirma Paulo Haus Martins, presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos das ONGs da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ).

Outro argumento em defesa das entidades sérias é que, se há por um lado alguém que receba os recursos, mesmo que não seja efetivamente uma ONG, de outro lado, há alguém que assina os pagamentos e os libera. Cabendo, segundo as ONGs e advogados especializados em terceiro setor, aos órgãos de controle – como Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU) – a fiscalização dos recursos repassados e, se preciso, a indicação de irregularidades para que a punição seja efetivada, sem criação de barreiras que incluam todas as entidades, de forma generalizada.

Para Martins, da OAB/RJ, a necessidade de regulação está diretamente ligada ao governo federal, e não ao terceiro setor. Segundo ele, quem necessita de fiscalização “é a própria fiscalização”. O advogado argumenta que é preciso entender o que se está fiscalizando.

Pressionado, o governo decidiu declarar caça às entidades “sujas”. Com a CGU tentando montar barreiras para impedir que ONGs envolvidas em irregularidades fiquem impedidas de firmar convênios com o poder público, no último dia 13 a presidenta Dilma Rousseff assinou o decreto 7.641 que regulamenta os repasses de verbas de convênio do governo federal para as instituições públicas e entidades privadas sem fins lucrativos.

O decreto, porém, interfere diretamente no trabalho de praticamente todas as ONGs por impor determinadas normas que dificultam a prestação de contas e mesmo a formação de novos convênios. A posição é de Jorge Eduardo Durão, assessor da ONG Fase, entidade existente há 50 anos. “Evidentemente houve irregularidades, mas chama atenção o fato de que, quando o problema aparece com ONGs que foram instrumentalizadas, o governo faz decreto criando dificuldades para todas as ONGs. Eu nunca vi o governo fazer decreto criando dificuldades para empresas, para empreiteiras, por exemplo, mesmo que houvesse denúncias de irregularidades”, lamenta Durão.

Incapacidade

As denúncias da falta de controle na distribuição de recursos da União e sua necessária prestação de contas têm fundamentos que os próprios órgãos de controle reconhecem como possível motivo: a incapacidade de fiscalização. Apesar do crescente o valor repassado às ONGs, o Tribunal de Contas da União (TCU) reconhece que há relativa carência de servidores para atuar na prestação de conta, caso a caso. No Relatório das Contas de Governo do Exercício de 2010, aprovado com ressalvas pelo TCU e divulgado em junho, admite-se que há inconsistência também nos sistemas que armazenam as informações relativas à transferência de valores.

De acordo com o levantamento, 2.780 entidades deixaram de entregar a documentação, mas o principal problema ocorre com as organizações que enviaram os esclarecimentos, mas não tiveram a prestação de contas verificada. Ao todo, 42.963 convênios estavam nessa situação no fim do ano passado, num atraso médio de seis anos e dez meses na análise dos papéis.

Mas segundo a Abong, das cerca de 338 mil entidades existente no Brasil, apenas uma minoria recebe repasses da União. 

Alvo

Não é a primeira vez que o cenário composto por entidades do terceiro setor é alvo de investigações. E também não foi não diferente com as acusações feitas durante a CPI das ONGs, aberta em 2007 e encerrada em 2010, que tiveram no centro denúncias envolvendo repasses à organizações ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), principal alvo da CPI. Em março de 2010, a comissão foi encerrada e arquivada sem comprovar os indícios que motivaram a abertura.