Despreparo e uso político da função limitam trabalho de conselheiros tutelares

Responsáveis pela defesa dos direitos de crianças e adolescentes, conselheiros tutelares sofrem com baixos salários e formação deficiente

Especialistas apontam necessidade de mudanças em seleção de integrantes do Conselho Tutelar (Foto: Sxc.hu)

São Paulo – Eleitos em outubro, os 220 conselheiros tutelares que vão atuar nos próximos três anos em 44 Conselhos Tutelares na capital paulista tomam posse nesta sexta-feira (18). Na semana passada, eles participaram de um encontro de formação continuada durante dois dias, promovido pela Secretaria Municipal de Participação e Parceria (SMPP), na sede do Ministério Público de São Paulo (MP). De acordo com informações do portal da Prefeitura, uma comissão formada pelos próprios conselheiros em atuação ficou encarregada de orientar os novos sobre as formas adequadas de atendimento à comunidade e questões administrativas. Também fez parte do programa palestra do MP e discussão de tópicos do manual de procedimentos do Conselho Tutelar.

Para especialistas ouvidos pela Rede Brasil Atual, a formação dos conselheiros tutelares é frágil e coloca em risco a efetividade do trabalho, destinado a zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. A utilização da função como trampolim para a vida política também preocupa. “É um serviço público relevante, que exige idoneidade moral, porque afinal são pessoas que vão cobrar de autoridades políticas e do poder público a proteção de crianças e adolescentes. Não deveria ser um trampolim para ascensão econômica ou política”, relata o presidente da Fundação Criança de São Bernardo do Campo (SP), Ariel de Castro Alves.

O modelo de estrutura para defesa dos direitos de crianças e adolescentes adotado no Brasil a partir da escolha de pessoas da comunidade é inovador, aponta a professora aposentada da cadeira de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP),  Maria do Carmo Brandt de Carvalho. Apesar disso, o processo esbarra no despreparo dos eleitos. “Temos conselheiros tutelares que são grandes líderes comunitários, mas que não sabem trabalhar com adolescentes”, descortina. Em Portugal, a escolha dos conselheiros é uma responsabilidade pública e ocorre entre profissionais da área de assistência social, ensina.

O despreparo dos conselheiros traduz-se em casos como o de uma adolescente que acusou o padrasto de persegui-la. A história, aceita por um conselheiro tutelar, mais tarde mostrou-se fantasiosa. As recentes ocorrências na capital paulista de gangues de meninas na região da Vila Mariana, zona sul de São Paulo, também são exemplo de ação tardia do Conselho Tutelar, cita  Maria do Carmo. “A ação (na Vila Mariana) foi muito demorada e virou um show midiático”, aponta. “É uma atividade em que o profissional precisa mesmo ser competente”, reforça.

Atuação

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Conselho Tutelar é um órgão público municipal permanente e autônomo, encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. O Conselho deve exercer suas funções com independência, inclusive para denunciar e corrigir distorções existentes na própria administração municipal relativas ao atendimento às crianças e adolescentes.

Por meio dos conselheiros tutelares, o órgão pode aplicar medidas a crianças e adolescentes, aos pais ou responsáveis, às entidades de atendimento, ao Poder Executivo e acionar a autoridade judiciária e o Ministério Público.

No dia a dia, os conselheiros atendem reclamações, reivindicações e solicitações feitas pelas crianças, adolescentes, famílias, escolas, comunidades e cidadãos. Exerce as funções de escutar, orientar, aconselhar, encaminhar e acompanhar casos. Aplica medidas protetivas de acordo com cada caso. Faz requisições de serviços necessários à efetivação do atendimento adequado das crianças e adolescentes.

Em Ribeirão Pires, município na região do Grande ABC, a conduta do Conselho Tutelar na morte de uma criança de dois anos, no domingo (13), é alvo de investigação da Polícia Civil. Segundo vizinhos, o órgão teria sido avisado sobre supostos maus tratos por parte da mãe e do padrasto da criança, mas não agiu em defesa do menor.

Para o conselheiro Carlos Napolitano, que atua há seis anos na região de Sapopemba, zona leste de São Paulo, o trabalho exige muito cuidado e preparo. Muitas vezes, os conselheiros levam apenas cinco minutos, durante uma visita à residência das famílias, para perceber se uma criança é vítima de maus tratos ou se a família não tem condições de cuidar dela. “É um trabalho muito sério. Muitas famílias dependem da atuação do conselheiro para se reerguerem ou acabarem de vez”, constata.

Trampolim

O uso político da função pode transformar  conselheiros tutelares em “vereadores da criança”, alerta a professora Maria do Carmo. “Para alguns, é um caminho político.” Esse tipo de conselheiro apresenta fragilidades na hora de lidar com questões mais complexas. Pela experiência de Napolitano, todo o trabalho é complexo.

Alves, da Fundação Criança, também questiona candidatos ao órgão com aspirações políticas.  “Há quem se candidate pelo cargo não pelo compromisso. Apesar da remuneração baixa, trata-se de um cargo de prestígio na comunidade”, descreve.

“Há pessoas desempregadas que se candidatam ao trabalho pelo salário, o que é um erro porque todas as dificuldades da família com as crianças desemboca no Conselho Tutelar e temos de lidar com pessoas frágeis, famílias inteiras que estão sofrendo. Lidamos com a vida das pessoas, não é brincadeira”, testemunha Napolitano.

Para ele, a atual forma de seleção não tem como garantir que pessoas preparadas integrarão o conselho. Quando iniciou o trabalho no órgão, há seis anos, Napolitano já trabalhava com crianças e adolescentes, ainda assim o dia a dia no Conselho Tutelar mostrou-se um grande desafio. “O trabalho vai além da criança e do adolescente, é com toda a família. Mesmo com experiência é preciso formação”, pede.

A única preparação que recebeu durante sua atuação foi de entidades sociais da região, antes mesmo de ser eleito. Do próprio município ele não se recorda de ter passado por cursos ou encontros. “No fim, depende mais do esforço de cada um.”

Na opinião do conselheiro, a prefeitura não se interessa pela defesa de crianças e adolescentes. “Se tivesse preocupação daria mais estrutura, convocaria os conselheiros para ajudar na construção de políticas públicas e haveria ações para auxiliar as famílias”, postula. “Na minha área de atuação em Sapopemba há 35 favelas e só um curso profissionalizante. Sugerimos políticas públicas nesse sentido para dar alternativas de futuro aos jovens, mas nada foi levado em conta.”

A carência de formação dos conselheiros não é a única dificuldade dos Conselhos Tutelares. Os órgãos ainda sofrem com falta de estrutura e baixos salários dos integrantes. Na capital paulista, o salário bruto é de R$ 1.400,00. Segundo Napolitano, os conselheiros não têm direito a auxílio-alimentação, décimo terceiro salário e a férias. 

Para a professora Maria do Carmo, a profissionalização da atuação do órgão depende também da revisão dos salários.

Mudanças na seleção

Maria do Carmo sugere que processo de escolha para integrar os Conselhos Tutelares, em grandes cidades como São Paulo, seja revisto com urgência. “É preciso adensar o processo. A escolha ficou superficial”, alerta. Ela acredita que a escolha, a exemplo do que ocorre em Portugal, deveria ocorrer entre profissionais de assistência social, familiarizados com os conflitos e as fragilidades das relações familiares.

Na opinião de Alves, o vício do processo de escolha de São Paulo é a falta de uma prova para demonstrar conhecimentos na área de infância e juventude.

Atualmente, os candidatos ao trabalho no órgão precisam ter 21 anos, morar e votar em São Paulo, ter reconhecida idoneidade moral, experiência e compromisso na área de defesa ou atendimento aos diretos da criança e do adolescente, comprovada por currículo, declaração de prova de atuação profissional e experiência na área dos direitos e/ou atendimento à criança e ao adolescente emitida pelo Ministério Público, ou pelo Juizado da Criança ou Adolescente ou por uma organização social registrada no Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, ou ainda, por movimentos populares ou instituições governamentais. “Nos próximos processos, seria importante ter um prova na seleção de São Paulo”, sugere Alves.

O processo eleitoral paulistano, realizado em 16 de outubro, está sob investigação do MP, após denúncias de irregularidades no transporte de eleitores por candidatos e boca de urna.