Poder de comissão que libera transgênicos é questionado

Eventuais equívocos na aprovação de novas variedades de sementes poderiam ser corrigidos por conselho de ministros, órgão que só se reuniu três vezes em seis anos

São Paulo – Não foi só o papel da Embrapa que entrou em discussão após a liberação comercial do feijão transgênico, no mês passado. O poder depositado sobre a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que tem a incumbência de avaliar novas variedades de sementes geneticamente modificadas, voltou a ser alvo de críticas após a decisão tomada em setembro.

Quando está completa, a CTNBio tem 27 titulares e 27 suplentes. São doze especialistas ligados à biotecnologia, nove representantes ministeriais e seis especialistas de áreas conectadas ao tema, como direito do consumidor, saúde do trabalhador e agricultura familiar. Em uma reunião, 14 votos são suficientes para aprovar uma nova variedade de transgênico que, direta ou indiretamente, vai parar no prato de 193 milhões de brasileiros – e, em caso de exportação, de mais gente. 

“Existem grupos lá dentro, um número reduzido de pessoas, que têm posição ideológica. Eles não usam argumentos científicos”, acusa o presidente da CTNBio, Edilson Paiva, em referência a quem se opõe à aprovação de novas variedades. Paiva é conhecido promover a tramitação rápida dos processos. Como no caso da Embrapa, que deu entrada ao pedido para seu feijão em 2010, e, mesmo com cinco pesquisadores declarando não haver condições de formular o voto, viu seu produto ser aprovado.

Foram 15 conselheiros a favor. Igual foi o número de integrantes da comissão que assinaram um manifesto a favor da liberação da semente da estatal antes da reunião em que se definiu o assunto. “As questões de biossegurança aparecem de uma maneira bastante banal para eles, ou seja, não têm relevância”, rebate Rubens Nodari, professor do Departamento de Fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina e ex-integrante da CTNBio. “Eles mais promovem a biotecnologia do que cuidam da biossegurança.”

O manifesto assinado pelos 15 integrantes da comissão favoráveis ao feijão transgênico nacional manifestava contrariedade à posição de pesquisadores como Nodari. “Esta oposição vai de encontro à intensificação sustentável da produção de alimentos e ao desenvolvimento do nosso país”, apontava o texto, que indicava agrado com a “façanha da nossa” Embrapa. O abaixo-assinado foi promovido por Paulo Paes de Andrade, representante do Ministério das Relações Exteriores na CTNBio. Ele é sócio da Biogene, uma empresa que atua na área de biotecnologia. Sediada em Recife, recebeu da CNTBio um certificado de qualidade em biossegurança. 

Que bloco?

Associações que lutam por soberania alimentar e pelo desenvolvimento da agricultura familiar entregaram pedidos ao Ministério Público Federal e ao ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante, para chamar atenção sobre o conflito de interesses envolvido no caso. A Lei de Biossegurança, que regulamentou a existência da CTNBio, prevê que é “vedado participar do julgamento de questões com as quais tenham algum envolvimento”, o que pode acarretar perda de mandato. 

Francisco Aragão, pesquisador da Embrapa responsável pela semente da estatal, minimiza a situação, e afirma não ter ficado surpreso com o fato de cinco pesquisadores haverem se declarado em diligência, ou seja, sem elementos suficiente para poder formular o voto. “É normal. Esses cinco membros da CTNBio sempre votam contra todos os eventos”, afirma Aragão, que também integra o colegiado.

O presidente Paiva, em seu terceiro mandato na comissão, notabilizou-se pela afirmação de que o glifosato, agrotóxico mais utilizado no Brasil, tem a vantagem de que “os humanos poderiam até beber e não morrer porque não temos a via metabólica das plantas”. Hoje, entende que o grande desafio da comissão é ter integrantes que atuem unicamente com “isenção política e ideológica”. Perguntado sobre o porquê de um parecer de Rubens Nodari que mostrava inconsistências de dados não haver suscitado o adiamento da decisão, responde:  “Ele continua com a mesma posição, de ir contra a esmagadora maioria do que está acontecendo no Brasil.”

Gabriel Fernandes, engenheiro agronômo da AS-PTA, uma organização que desenvolve projetos de agroecologia, entende que a atuação de 15 conselheiros no caso do feijão da Embrapa e a resposta de Paiva ao parecer não são muito diferentes de outros casos, salvo pelo tom ufanista da reunião de setembro. “Eles têm uma resposta padrão que é válida para aquilo que acontece nas audiências públicas, que é dizer que nenhuma informação nova foi aportada. Então, não permitem o debate para se aprofundar a análise.”

“Um grupo tem consciência cega na ciência e outro acredita que se deve ter uma conduta mais cautelosa”, acrescenta Leonardo Melgarejo, representante do Ministério de Desenvolvimento Agrário. “O alarmante é que uma corrente é formada por pessoas que têm uma segurança desmedida. Não é comum em cientistas ter confiança absoluta em processos que estão em andamento. A dúvida é necessária.”

No nascedouro

A explicação dos problemas da CNTBio pode ser encontrada em seu berço. A Lei de Biossegurança foi fruto de duros debates no Congresso. Inicialmente, o colegiado teria caráter consultivo e caberia aos órgãos ministeriais habituados a lidar com saúde humana e meio ambiente a decisão sobre a liberação de novos transgênicos – Ibama, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Embrapa. “Mas por uma pressão, um lobby muito forte em cima do Congresso, não foi assim. Decidiu-se que a CTNBio é uma instância com poderes totais”, lamenta Fernandes. “Essa situação que a gente vê hoje, no fundo é resultado dessa vitória da indústria de biotecnologia na regulamentação do tema no Brasil.”

O poder considerado desproporcional poderia ser amenizado, ou mesmo corrigido, por duas questões. A primeira é uma cautela maior na indicação de membros, sem ligações com empresas ou associações de biotecnologia. A segunda, prevista na Lei de Biossegurança, é a atuação efetiva do Conselho Nacional de Biossegurança, formado por onze ministros de Estado e com poder para avaliar, cobrar esclarecimentos e, se necessário, vetar decisões da comissão. As reuniões do conselho não têm periodicidade definida – foram três desde 2005. 

Para que se tenha uma ideia da intensidade da atividade do órgão, as equipes de comunicação da Casa Civil e dos ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento e de Ciência, Tecnologia e Inovação, além dos quadros burocráticos da CTNBio, sequer sabiam da existência do conselho. Informar a data da última reunião, então, pareceu tarefa impossível mesmo para a equipe jurídica do Palácio do Planalto. Com isso, todo o peso – e todo o poder – recai sobre a CTNBio. E as consequências dos atos, positivas ou não, recaem sobre os alimentos.