‘Guarda-chuva’ de dom Paulo garantiu investigação sobre tortura

São Paulo – Bater em cachorro trôpego não vale? Pode até valer, se o cachorro for sabidamente feroz e estiver ameaçando se levantar para novos ataques. Quando o projeto Brasil […]

São Paulo – Bater em cachorro trôpego não vale? Pode até valer, se o cachorro for sabidamente feroz e estiver ameaçando se levantar para novos ataques. Quando o projeto Brasil Nunca Mais foi criado, a ditadura encaminhava-se para o final, já dando seus tropeços, dentro da caserna o clima estava longe de ser harmônico, e da cabeça da advogada Eni Moreira não saía a memória de que é nestes momentos que as provas desaparecem. Quando o projeto chegou ao fim, a ditadura já tinha data marcada para ir embora, mas não os seus métodos de coerção, a herança de tortura que restaria a delegacias e corporações policiais de todo o país.

Entre 1979 e 1985, um restrito grupo de advogados trabalhou sob o manto protetor de dom Paulo Evaristo Arns para montar o primeiro retrato sistemático da repressão elaborado a partir dos próprios registros dos agentes do Estado. Eni Moreira, com a ideia fixa na cabeça e já presidindo o Comitê Brasileiro pela Anistia dos integrantes dos grupos de resistência ao regime, foi à Suíça pedir o auxílio financeiro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que reúne as entidades protestantes.

Recebeu de Charles Harper, de nacionalidade brasileira e norte-americana e membro do CMI, a resposta de que bancaria os trabalhos, mas com uma condição: era preciso o aval de dom Paulo e de Jaime Wright, pastor presbiteriano e amigo em comum de Harper e dom Paulo. “Quando narrei para ele essa história, ficou encantado, imediatamente deu o aval”, conta a advogada a respeito do primeiro contato com o cardeal.

Daí por diante, era articular ações. Wright, gordinho, ia até a Suíça buscar dinheiro, que trazia escondido debaixo da roupa. Tudo sem contar para a família, que não desconfiou porque o pastor sempre manteve uma intensa agenda de viagens, e ia e voltava com certa desenvoltura. “A gente sabia que existia um projeto, mas a gente não sabia exatamente o quê”, afirma Anita Wright, filha de Jaime. “Ele sabia que os telefones lá de casa talvez estivessem grampeados, mas nunca deixou de conversar com quem precisava conversar. Falava que isso era uma espécie de proteção. Dificilmente fariam alguma coisa com ele por causa desse contato.”

Aqui, Wright ajudou a montar a equipe. Eni, Paulo Vannuchi, Luiz Carlos Sigmaringa Seixas e Luiz Eduardo Greenhalgh eram alguns dos que trabalhavam sob sigilo. Valiam-se, como advogados, do direito de ter acesso aos processos dos clientes no Superior Tribunal Militar, em Brasília. Fotocopiavam os documentos e os guardavam em São Paulo, em silenciosas operações. “O ‘guarda-chuva’ que dom Paulo nos deu garantia uma certa tranquilidade. Quando havia alguma suspeita a gente mudava de lugar”, diz Eni. “É engraçado porque aqui no Brasil existe a cultura de que ninguém guarda segredo, e durante seis longos anos a gente trabalhou absolutamente em sigilo.”

Os arquivos, microfilmados por gente que não sabia do que se tratava, foram enviados à Europa e aos Estados Unidos, e apenas neste ano começaram a retornar. O mais importante, um livro que denunciava o modus operandi da ditadura, já estava pronto. Lançado em 1985, ficou durante meses na lista dos mais vendidos, e jamais foi negado por fontes do regime, já que se baseava em informações obtidas em depoimentos registrados pelo Estado.

Por segurança, apenas dom Paulo e Philip Potter, secretário-geral do CMI, assinaram a obra, cujos verdadeiros organizadores só seriam conhecidos muitos anos mais tarde – alguns preferem se manter em anonimato até hoje. As formas de tortura, as distorções das realidades, as “confissões” assinadas sob coerção, no entanto, tudo isso vinha à tona no momento em que os militares deixavam o comando do país. Com um quadro desses, para que a sociedade nunca mais aceitasse abrir mão da democracia.

 

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