Lei Maria da Penha avança como protetora da mulher vítima de violência

Criada há cinco anos, lei ainda esbarra no preconceito da sociedade e também na dificuldade em denunciar e punir a truculência masculina

São Paulo – Amanhecia quando começaram as ligações ameaçadoras do ex-marido de Fátima (nome fictício).  Apesar da separação, Tiago (idem) decidiu, sem consultá-la, que voltaria para casa. Ao não encontrar a ex-mulher, que trabalhava à noite, começou a ligar, seguidamente. Primeiro ele pedia para vê-la, mas diante das negativas, começaram as ameaças de morte e, depois, de suicídio. “Ele queria me amedrontar, ameaçava, depois falava com voz mole, dizia que ia tomar vodca em cima dos remédios “tarja preta” que ele usa”, relata.

Fátima não voltou para casa. Correu para uma delegacia na capital paulista, onde registrou queixa. No local, a equipe que a atendeu sugeriu que ela também procurasse a corregedoria da Polícia Militar – Tiago é membro da corporação.

Ao chegar no batalhão, os policiais já puderam ouvir no viva-voz do celular as ameaças do colega à ex-mulher. Tiago relutava em confirmar onde estava. Ora dizia estar na casa dos filhos, ora na casa dos pais. “Nesse dia, eu fiquei das 8 (horas) da manhã às 5 da tarde negociando que ele desistisse da violência contra mim e contra ele mesmo”, lembra Fátima.

Às 17h daquele dia de abril deste ano, a polícia conseguiu “resgatar” Tiago. Fátima não faz questão de lembrar o dia, embora ande com os boletins de ocorrência contra o ex-marido na bolsa, no caso de sofrer alguma agressão por parte dele e ter de pedir ajuda policial.

Num dado momento durante o tempo que Tiago passou fazendo ameaças, ele fez um disparo acidental de sua arma e acabou machucado, deixando sangue nas paredes. O socorro exigiu policiais militares, bombeiros, ambulâncias e isolamento da área. A ação o deixou ainda mais ameaçador, analisa Fátima. “A raiva dele é ter passado por tudo aquilo. Mas eu fiz (chamar a polícia) para resguardar a minha vida e a dele também”, argumenta.

Na volta para casa, Fátima se deparou com móveis quebrados e utensílios espalhados. Havia sangue nas paredes e suas roupas estavam queimadas. “Ele só deixou o quarto dos meninos”, aponta. “Quando ele viu que eu não ia voltar para casa, destruiu tudo, pegou minhas roupas, três litros de álcool e fez uma fogueira”, descreve. “Essa roupa aqui (mostra o uniforme que usa no trabalho) estava do lado de fora, para lavar.”

Os três filhos que moram com Fátima não sofreram nada, porque estavam na escola e foram direto para a casa dos avós. Quatro meses depois, ela resume: “A violência dele acabou com nossa vida”.

Agressões

Depois de semanas de internação em uma clínica psiquiátrica, Fátima ainda pensou em ajudar o ex-marido e assentiu que Tiago completasse a reabilitação em sua casa, junto dos filhos. Ele, porém, insistiu em retomar o casamento e ter “relações(sexuais)”, explica a jovem. A negativa da ex-mulher foi motivo para uma tentativa de homicídio. “Ele levantou da cama, saiu correndo para pegar alguma coisa. Eu entrei no quarto do meu filho e gritei para a vizinhança chamar a polícia. Coloquei um móvel atrás da porta e segurei ao máximo. Mas, ele entrou e me deu alguns socos, até que a polícia chegou”, detalha.

Fátima fez nova denúncia na delegacia e passou por exame de corpo de delito pelas agressões sofridas. Ela também procurou a ouvidoria da Polícia Militar para registrar queixa contra o ex-marido. Mas desistiu ao ser informada que isso o levaria a perder o emprego. “Não quis acabar com a carreira dele”, afirma. Ela menciona que, como a maior parte dos policiais, Tiago mantém vários trabalhos para sobreviver financeiramente. “É muita pressão, muito estresse. Para viver com policial, gostar não basta. Tem de amar muito”, explica. “Não há feriado, não há vida própria, a gente vive a vida do marido policial.”

Ela também evitou pedir medidas protetivas pelo mesmo motivo: o receio de que o ex-marido fosse expulso da corporação. Enquanto isso, o horror – confessa – é seu parceiro diário. “Tenho medo que ele me pegue na rua, tenho medo das mensagens (por celular).”

E as mensagens continuam a chegar, até mesmo quando concedia entrevista à Rede Brasil Atual. O conteúdo varia de “eu quero ter de volta o seu amor”, até “você vai se arrepender de não me dar atenção”. “Ele chora e quando vai em casa fico em pânico, porque se ele quiser me matar, meus filhos não podem fazer nada”, considera.

A vida segue, contudo e apesar de tudo, diz Fátima. Desde a separação, há quase um ano, ela passou a trabalhar o máximo possível para não pensar nos problemas. Sua receita para minimizar as ameaças diárias é viver sem mágoas. “Ninguém me domina, porque eu não guardo rancor”, filosofa.

Para a prestadora de serviços, o ex-companheiro foi um parceiro muito bom ao longo dos 18 anos de casamento, mas uma pessoa ameaçadora após a separação. “Ele está doente”.

Nas duas vezes em que denunciou o comportamento violento de Tiago, Fátima não chegou a procurar uma Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). Ela conhece a lei Maria da Penha, mas evita pedir medidas protetivas com medo de “causar problemas” ao ex-marido e agressor. “Torço para que ele fique bem, porque meus filhos também vão ficar.”

Rigor

Foi com o objetivo de coibir casos de violência como o que Fátima e milhares de mulheres sofrem que, há cinco anos, entrou em vigor a Lei Maria da Penha. A legislação aumentou o rigor das punições para as agressões contra  a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar e criou estruturas específicas para atendimento às vítimas, como Delegacias de Defesa da Mulher e centros de atendimento.

A legislação leva o nome de Maria da Penha Maia Fernandes, espancada de forma brutal e violenta diariamente pelo marido durante seis anos de casamento. Ela também sofreu por duas vezes tentativa de assassinato. A primeira ocorreu com arma de fogo e ela terminou paraplégica. Na segunda, foi por eletrocussão e afogamento.

Para o especialista em direito cível e criminal, Alessandro Martins Silveira, a lei tem “espectro amplo” e ultrapassa o direito criminal. “Ela cobre não só a violência física contra as mulheres, mas também a psicológica, sexual, patrimonial e moral”, conceitua.

A lei inovou ao retirar os episódios de violência contra a mulher dos juizados especiais criminais, destinados aos casos de menor potencial ofensivo. “Lesões consideradas não muito graves eram julgadas por um juiz especial criminal. O marido se apresentava voluntariamente e muitas vezes tinha como sanção doar cestas básicas ou pintar o muro da escola”, lembra.

A iniciativa também aumentou a pena para lesão corporal, que passou a ser de três meses a três anos de reclusão. A abertura de processo contra o agressor não depende mais de representação da vítima. A formulação de Boletim de Ocorrência já dá início ao processo contra o agressor. “A partir da denúncia contra o marido, ela não pode mais retirar a queixa”. Antigamente as mulheres voltavam atrás e desistiam da denúncia, devido à pressão dos companheiros. Agora é “ação penal pública incondicionada” e não depende de representação”, aponta Silveira.

A mulher que sofre humilhações ou tentativa de sexo forçado por parte do cônjuge também pode recorrer à Lei Maria da Penha e denunciar a agressão. “A pessoa acha que, porque está sob o manto do casamento, a mulher tem de fazer sexo com ele quando bem entender. Isso é mais um ranço de machismo na sociedade”, alerta o advogado. A legislação também tem validade para casais homoafetivos, porque “fala em violência doméstica ou familiar”.

Sobre violência psíquica, o especialista ensina que “se a mulher for humilhada no âmbito doméstico ou numa relação de afeto, de marido, companheiro, namorado, aplica-se igualmente a lei Maria da Penha.”

Apesar de diversas tentativas, Silveira destaca que os homens não podem utilizar a lei se forem vítimas de agressão feminina. “É uma lei que procura igualar pessoas e fatos que não são iguais”, define. “Se pegarmos todos os casos de agressões no âmbito familiar, em 90% dos casos, o homem é que agride a mulher.”

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