Apesar de impunidade, federalização de crimes no campo divide opiniões

Justiça federal tende a sofrer menos pressão do que a estadual, mas haveria risco de sobrecarga

São Paulo – A insegurança entre trabalhadores rurais e a impunidade dos assassinatos no campo levam ativistas a defender a possibilidade de se transferir para a Justiça Federal a competência no julgamento desses crimes. No Pará, por exemplo, de dois meses para cá, seis pessoas foram assassinadas. A possibilidade de tirar os casos da competência estadual divide opiniões.

Para o presidente da Associação dos Juizes Federais (Ajufe), Gabriel Wedy, a impunidade no Pará chega a praticamente em 100% dos casos. Ele defende que a transferência para a Justiça Federal eliminaria a pressão política e econômica que os magistrados estaduais sofrem, pois os juizes federais são vinculados apenas à União.

Quem concorda com a federalização considera a medida como chave para acabar com a impunidade. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), dos 1.186 casos de violência catalogados nos últimos 26 anos, com 1.580 vítimas, apenas 8% tiveram acusados julgados. Entre os mandantes condenados, apenas um permanece preso.

A transferência de competência:

A federalização de crimes contra os direitos humanos já é possível desde 2004, quando a Reforma do Judiciário criou o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). Esse mecanismo permite ao Ministério Público pedir ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) o julgamento na esfera federal desses crimes, em qualquer fase do inquérito.

O consenso, no entanto, está longe de ser alcançado. Na visão de Nelson Calandra, presidente da Associação de Magistrados do Brasil (AMB), a Justiça Federal foi criada para reprimir crimes que ocorram entre estados ou que ultrapassem o território nacional. “Então, crimes (que resultam de conflitos agrários) trariam uma concentração de encargos para a Justiça Federal, resultando, possivelmente, na não punição dos culpados”, defende Calandra.

Wedy, presidente da Ajufe, considera que, em razão da lentidão e da impunidade dos casos colocados na Justiça Estadual, o Brasil vem sendo alvo de sanções por parte de organismos como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, instituição ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA). Nesses casos, ainda que sejam a polícia e a Justiça estaduais as resposáveis por não haver desfecho para o inquérito, é a União que acaba como alvo das sanções internacionais.

Então, é cabível que sejam federais os juízes responsáveis pelo julgamento dessas violações de direitos humanos. “Lamentavelmente, isso mostra que a Justiça não está funcionando nesse tipo de processo. A imagem do país fica muito prejudicada no exterior com esses crimes”, destaca Wedy.

A discussão

Nesta semana, movimentos sociais e familiares do casal extrativista que foi morto em Nova Ipixuna (PA), a 390 quilômetros da capital do estado, mobilizaram-se para pedir o afastamento do juiz responsável pelo caso. Os ativistas justificam o pedido com base no fato de o juiz ter se negado, por duas vezes, a decretar a prisão de suspeitos do crime. Sem a detenção, os acusados teriam fugido da região.

Em nota, a Associação dos Magistrados do Pará, na quarta-feira (27), repudiou a mobilização dos movimentos sociais que pediam o afastamento do juiz e defendeu o trabalho feito pelo magistrado responsável pelo caso.

“O juiz Murilo Simão está ciente dos conflitos fundiários da região sob sua responsabilidade, porém não pode, a pretexto de ‘combater a violência no campo’, proferir decisões que, de acordo com seu entendimento, não encontram respaldo no ordenamento jurídico”, defendeu a associação. Somente na sexta-feira (29) a justiça paraense decretou a prisão preventiva dos acusados pelo crime.

Outros casos

A possibilidade de se federalizar a investigação e a denúncia de violações de direitos humanos foi fomentada pela mobilização popular. Porém, na prática, a transferência só foi permitida uma única vez, em 2010, no caso do assassinato do advogado pernambucano Manoel Mattos, que denunciou a ação de grupos de extermínio na divisa entre Pernambuco e Paraíba, que contabilizam mais de 200 mortes não apuradas.

Outro caso de repercussão devido ao apelo de movimentos sociais foi o assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, morta no Pará em 2005. À época, a negativa do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu-se sob o argumento de que não haveria indício de incapacidade das autoridades do Pará.

Outros crimes que não envolvem a questão agrária também resultaram em tentativas para se federalizar os inquéritos, sem sucesso. Foi o caso dos crimes de maio – assassinatos cometidos pela polícia em represália aos ataques do PCC em 2006 em São Paulo.