Audiência pública sobre armas menos letais termina em bate-boca e com pouco avanço

Polícia Militar e deputados reunidos na Assembleia Legislativa paulista indicam que proibir o uso da força contra movimentos será difícil

Até a decisão deste ano do STF, a Marcha da Maconha era uma das que mais sofriam com a repressão. Com nova edição neste sábado em São Paulo, os organizadores esperam que a situação mude (Foto: ©Luis Branco. Folhapress)

São Paulo – Foi marcada por profundo acirramento a audiência pública desta quinta (30) na Assembleia Legislativa de São Paulo para debater a regulamentação do uso de armas menos letais. As posturas do líder da base do governador Geraldo Alckmin, do deputado Major Olímpio (PDT) e do representante da Secretaria de Segurança Pública estadual desagradaram integrantes de movimentos sociais e o evento terminou em bate-boca.

A sessão, com duração de quase três horas, foi interrompida diversas vezes por discussões entre militantes e o coronel Luís de Castro Júnior, diretor de Policiamento Comunitário e Direitos Humanos da Polícia Militar paulista.

Os representantes de diversos movimentos também não concordaram com a palavra concedida ao Major Olímpio, parlamentar que não havia sido inscrito na programação oficial da audiência.

O debate foi convocado pela Comissão de Direitos Humanos a pedido do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, com apoio da Comissão de Justiça e Paz e da Associação Juízes para a Democracia. A intenção era debater a formulação de um projeto de lei que estabeleça como, quando e onde podem ser utilizados instrumentos como bombas de efeito moral e spray de gás de pimenta.

Militantes se queixam da histórica repressão policial a manifestações de rua, que neste ano já registrou casos graves em atos realizados na capital paulista contra o aumento da tarifa do ônibus municipal e a favor da liberdade de expressão.

O líder da base de Alckmin, Samuel Moreira (PSDB), mostrou durante a audiência o projeto que elaborou em 2009 para disciplinar o uso de armas menos letais. O foco do texto, no entanto, é o uso desses equipamentos para substituir armas de maior letalidade, como revólveres, e fuzis, em vez do disciplinamento da aplicação contra manifestações sociais. “O que estamos tentando neste primeiro momento é ordenar essa situação. Quanta gente perdeu a vida porque naquele momento não foi empregada arma não letal?”, ponderou.

Este foi um dos pontos que deram início ao acirramento de ânimos. Militantes insinuaram que o projeto havia sido elaborado para favorecer as fabricantes de armas menos letais e lamentaram a preocupação do parlamentar com a proteção do patrimônio privado, em detrimento da preservação da integridade física. Teve início um bate-boca que só teve fim com a intervenção do presidente da comissão, Adriano Diogo (PT). 

Banir

Representantes do poder público presentes à audiência somaram-se à defesa dos movimentos sociais de que se acabe com o porte de armamentos menos letais em manifestações sociais. Luís Fernando Camargo de Barros Vidal, representante da Associação Juízes para a Democracia, indicou que a criminalização de movimentos vem atingindo com cada vez mais força a juventude e os setores da sociedade civil que protestam por transformações. 

Vidal sugeriu alterações no projeto de Moreira para delimitar exatamente as circunstâncias em que é permitido o uso desses equipamentos. Ele lamentou que o texto do deputado fale que essas armas devem se voltar à incapacitação pessoal, uma visão que, para ele, é dos fabricantes e que contém a noção de imobilização política. Vidal pede a alteração da matéria, “de modo que qualquer um que esteja em seu direito constitucional de manifestação jamais possa ser alvo dessa incapacitação temporária”, sugeriu.

Vítimas da aplicação inadequada das armas pontuaram que há um uso indiscriminado como forma de intimidar a população, evitando que se exerça o direito assegurado pelo artigo 5º da Constituição – um direito reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) este mês, quando definiu que atos públicos como a Marcha da Maconha podem ser realizados, em nome da liberdade da expressão.

Márcia Balades, ferida na perna durante uma manifestação em março de 2007 na Avenida Paulista, não aceitou a versão de que a repressão não é uma ordem do comando da Polícia Militar. “Se a violência não é institucional, então cada policial tem um código de ética próprio com o qual age naquele momento. Eles vêm preparados para a guerra, e nós, não. Somos manifestantes pacíficos.”

Já está, mas não se sabe

O deputado Major Olímpio tentou jogar água fria no debate ao afirmar que tudo o que se discute, no projeto de Moreira e na audiência pública, já está previsto em regulamentos internos da Polícia Militar. Classificando-se como “corporativista”, ele observou que a PM de São Paulo cumpre todos os preceitos nacionais e internacionais de respeito aos direitos humanos. “Dizer que a polícia é violenta, que quer exacerbar o uso da força, isso tudo, na minha visão, tem cada vez menos guarida ou qualquer estímulo dentro da instituição como um todo.”

Durante um mês, a reportagem da Rede Brasil Atual solicitou à corporação o acesso aos regulamentos que regem o uso de armas menos letais. O mesmo pedido foi apresentado pelo Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e até mesmo pela Ouvidoria da Polícia Militar. Em nenhum dos casos houve resposta. 

Para os militantes, a regulamentação é fundamental para que os cidadãos possam saber de que instrumentos dispõem para evitar abusos. Atualmente, pessoas feridas por policiais têm como único caminho buscar uma indenização do Estado no Judiciário por danos morais, o que leva até uma década.

Além disso, é difícil obter a punição dos policiais envolvidos na repressão. Em parte por corporativismo, em parte também pela dificuldade em identificar o agressor. “O que vejo, sendo manifestante, é que os policiais sempre retiram a identificação, já se preparando para o abuso”, acusou Pablo Ortellado, professor universitário e militante, que já sofreu fraturas expostas na perna por conta da ação policial. “Nunca fiz nenhum ato ilícito e sempre fui tratado pela força policial de maneira abusiva, como se estivéssemos cometendo um crime, comandando uma gangue.”

Fugas à regra

A fala que mais provocou a ira dos presentes à audiência foi a do Coronel Luís de Castro Júnior, que representou a Secretaria de Segurança Pública estadual. Ele falou apenas nos últimos minutos da audiência, mas foi o suficiente para uma dezena de interrupções sob a acusação de “mentira”. “As manifestações e as reivindicações são legítimas. O problema é o comportamento de algumas pessoas”, afirmou o diretor de Policiamento Comunitário.

Outro ponto que acirrou ânimos foi a defesa da repressão da Marcha da Maconha, ocorrida em maio. “Não havia ainda uma decisão do Supremo em questão da liberação. A ordem judicial do estado de São Paulo era de que a manifestação era ilegal. Nós cumprimos o que está escrito na lei.” Na ocasião, uma decisão do Tribunal de Justiça paulista vetava a realização da marcha. No entanto, organizadores transformaram o ato em uma defensa da liberdade de manifestação, e negociaram previamente com o comando da PM. Não foi o suficiente e houve repressão.

Mayara Longo, integrante do Movimento Passe Livre, foi ferida há cinco anos por bombas atiradas por policiais. Perdeu parte do dedo, ficou internada durante uma semana e não pôde se locomover sozinha durante algum tempo. Ela lamentou que se diga que há regras de conduta, uma possibilidade teórica que não se respeita na prática. “É decente fazer isso com um ser humano desarmado? É humano? Nossas convicções são muito mais fortes que os ferimentos que vocês têm para oferecer para a gente. Vamos continuar indo para a rua.”

No fim, o coronel se prontificou a receber militantes para debater o assunto e mostrar como se faz o treinamento sobre o uso de armas menos letais. As defesas do lado dos policiais durante a manifestação, por parte dele, e a dos manifestantes, por parte dos representantes de movimentos, mostram que é difícil eliminar as desconfianças de parte a parte. Ao mesmo tempo, os militantes esperam formar uma comissão para debater mudanças no texto de Moreira ou a elaboração de um novo projeto que leve à proibição da repressão de manifestações sociais. 

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