Presídio de Urso Branco começa a acertar contas com a Justiça

Saem primeiras condenações de envolvidos em chacina de presos em 2002 em Urso Branco, Rondônia; Caso levou Brasil pela primeira vez ao Sistema Interamericano de Justiça

Michel Alves das Chagas, conhecido como Chimalé, foi condenado a 486 anos de prisão em regime fechado (Foto: Tribunal de Justiça de Rondônia)

Porto Velho – Sérgio quer o mesmo de sempre: kafta com batatas, macarrão, dois ovos fritos, uma lata de refrigerante. O dia pode ser especial, mas o cardápio é o corriqueiro. O garçom do pequeno restaurante do centro da capital de Rondônia deve imaginar que nada mudou nas preferências do freguês, mas por via das dúvidas prefere perguntar.

Enquanto almoça, Sérgio mantém os olhos grudados na televisão, sintonizada em um canal local que transmite repercussões sobre o principal fato da semana. Nem por isso deixa de conversar com os demais sentados à mesa: fala sobre aviões, sobre os tempos vividos no interior do estado e, claro, sobre o julgamento que ocorre a duas quadras de distância. Lá, em poucos instantes, dois presos acusados de comandar em 2002 a chacina de outros 27 apenados do presídio de Urso Branco serão interrogados.

A hora do almoço do dia 4 de maio é um dos poucos intervalos possíveis por estes dias na vida de Sérgio William Domingues Teixeira, juiz titular da Vara de Execuções e Contravenções Penais de Porto Velho. De volta ao prédio do Tribunal de Justiça de Rondônia, ele enfrenta a mesma agitação de todos os dias e um pouco mais: não consegue andar cinco metros sem que alguém o procure para falar dos mais variados temas.

Depois do almoço, no início de mais uma tarde úmida e quente na cidade, a sala do 1º Tribunal do Júri recebe familiares de vítimas, advogados, jornalistas e curiosos. Está em curso o julgamento pelos crimes que renderam a primeira ação contra o Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos – movida meses depois da chacina, oito anos atrás. Desde então, foram oito resoluções negativas ao país.

Sérgio não comanda o júri popular, função que cabe a seu colega Aldemir de Oliveira, mas tem grande interesse em assistir a tudo porque se ocupa constantemente da questão prisional. O juiz participa da Comissão Especial Urso Branco, integrada entre outros por representantes dos governos federal e estadual, da sociedade civil e do Ministério Público Estadual.

“Essa é uma data de fundamental importância. Não estou falando de condenação ou absolvição, mas do julgamento. De levar adiante as investigações e mostrar que o Estado tem uma resposta para os crimes cometidos em Urso Branco”, afirma o juiz durante uma breve entrevista que, para ocorrer, precisa vencer em torno de vinte minutos de paradas em salas e em corredores.

Mostrar uma resposta é necessário para evitar novas resoluções negativas contra o Estado brasileiro por parte da Corte Interamericana. Trata-se de um passo que precisa estar casado com as melhorias no próprio presídio, um dos temas sobre os quais se debruça desde sua criação, em 2004, a Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.

Julgamento

Michel Alves das Chagas e Anselmo Garcia de Almeida talvez não tenham dimensão dos fatos que cercam este julgamento. Conhecidos como Chimalé e Fininho, os dois são os primeiros de uma série de 16 réus que serão julgados até o fim deste mês.

É começo de manhã quando Chimalé, rapaz de estatura média que veste calça jeans e uma camisa da Seleção Brasileira, é convocado a tomar seu assento no canto da sala de julgamento. A seu lado, logo em seguida, senta-se, de cabeça baixa, Fininho, com camisa verde claro, calça jeans e óculos.

Urso Branco, aberto em 1996 com o nome de Casa de Detenção Mário Alves, é um presídio de Porto Velho no qual ocorreram pelo menos duas chacinas (2002 e 2004) e que tem em torno de cem mortes ao longo de sua existência.

Construído para abrigar 470 apenados, chegou a contar com mais de 1.300 e, graças a pressões internacionais, tem atualmente 670.

Depois da escolha dos jurados, começa uma exaustiva leitura da peça de acusação formulada pelo Ministério Público Estadual. Uma compilação de testemunhos que, em suma, incluem Chimalé e Fininho entre os comandantes da chacina.

Em janeiro de 2002, Urso Branco era um presídio completamente fora de controle. Vários presos, por distintos motivos, tinham regalias, eram os chamados “celas livres”, aqueles que circulavam por onde bem entendessem. Ninguém sabe o número exato, mas a Casa de Detenção José Mário Alves abrigava mais de 1.200 apenados, diante de uma capacidade de 470.

Logo no primeiro dia do ano, os internos decidiram organizar uma fuga, que fracassou e acabou reprimida a balas. O diretor da unidade à ocasião, Weber Jordano Silva, tinha em sua gaveta uma ordem judicial recente que determinava a remoção dos detentos do chamado “seguro”, área existente em praticamente todos os presídios com a função de segregar os ameaçados de morte e os condenados por estupro. Ao seguir a determinação, o resultado, como afirmou Fininho, era o que se esperava: misturar os presos do “seguro” com os demais pavilhões seria provocar brigas e mortes – foram 27.

Argumentos

Quando chega a hora de falarem, Chimalé, primeiro, e Fininho, depois, negam veementemente todos os crimes. Um diz que estava abrigado na igreja quando ocorreu a matança. O outro, garante ter sido atingido por uma bala na cabeça durante a tentativa de fuga, argumenta que ficou dentro de sua cela, a número 4 do pavilhão C. Ambos afirmam não entender por que tantos depoimentos apontam-lhes como culpados, já que que não tinham inimizades dentro da cadeia.

Os espectadores, no geral, permanecem calados. As advogadas de Fininho têm algumas reações, intercaladas por rápidas cochiladas. Quando é chamada a falar, uma delas se levanta, pega o microfone e começa a caminhar pela sala:

– Ânderson…
– Anselmo! É An-sel-mo – adverte a colega, que na sequência, ciente de que a gafe não escapou aos ouvidos dos presentes, traz à tona uma explicação – É que Ânderson é o nome do namorado dela.

Agora, sim. As duas advogadas assumiram o caso há menos de uma semana. Chegaram do Rio de Janeiro na véspera do júri. Elas não revelam o motivo de terem entrado em questão tão complexa com tempo tão esguio para analisar acusações acumuladas ao longo de oito anos.

Mas, como disse Anselmo (também conhecido como Fininho ou Jornal) no começo do julgamento, ele não tem família e, ao que se sabe, como apenado tampouco goza de rendimentos. Questionada sobre quem arca com os honorários, a advogada Lucila Barros escapa: “Estou sendo paga. Mas não conto nem quanto nem quem”.

Durante todo o tempo, ela buscaria desqualificar a atuação do Ministério Público no caso. Uma troca de farpas que se iniciou naquele momento. A advogada perguntou a seu cliente se, ao longo de todos depoimentos anteriores, ele não havia revelado o ferimento sofrido durante a tentativa de fuga por medo de represália. Fininho respondeu afirmativamente. O promotor Renato Puppio protestou, pedindo perguntas mais objetivas: “Está colocando na boca do réu palavras que ele nem sabe o que significam.”

Durante a sustentação oral, que tomou todo o dia seguinte, a advogada tentou mostrar que os jurados poderiam cometer uma injustiça caso definissem pela condenação. O promotor, por outro lado, alegou que os réus são extremamente perigosos. “As 27 pessoas mortas tiveram suas vidas ceifadas da maneira mais cruel. Todos eles antes de morrer foram torturados”, rebateu.

Por fim, os sete jurados decidiram pela condenação de Chimalé e de Fininho. Como não há maneira de separar a autoria dos 27 homicídios cometidos naquele janeiro de 2002, a decisão foi por atribuir a cada um dos envolvidos a responsabilidade pelas mortes. As penas dos dois, somadas, resultam em quase um milênio de cadeia. Há a possibilidade de recurso.

Rondônia, oito anos depois, começa a dar resposta aos fatos. Mas finalizar o tema, ou seja, responsabilizar os agentes do Estado, pode ser tarefa mais complicada. O diretor-geral, o diretor de segurança e o gerente do sistema penitenciário à ocasião entraram com recurso e caberá ao Tribunal de Justiça local definir se eles serão ou não julgados.

Sérgio William está, por ora, satisfeito. “É uma resposta à sociedade. Mostrando que aqueles criminosos que, mesmo recolhidos, cometem os crimes graves que foram cometidos, a resposta do Estado é essa, de uma pena extremamente dura”, afirma.

Sérgio quer o mesmo de sempre.

Nota: na noite de terça-feira (11) foi finalizada a segunda sessão de júri dos acusados de participar da chacina de 2002. Alexandre Farias, o Carioca, e Assis Santana da Frota foram condenados a 432 anos de prisão. Cirço Santana da Silva foi absolvido porque os jurados entenderam que ele não participou dos crimes.

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