Lilian Celiberti analisa participação feminina na política sul-americana

Para uruguaia, rudeza e brutalidade ainda pautam atuação nas instâncias de poder. Ativista fala também da memória dos tempos de ditadura nos países do sul, inclusive o Brasil

A ativista uruguaia Lílian Celiberti considera que a dívida deixada pelas ditaduras, por mais que se queira sufocar, continuará vindo à tona (Foto: Renato Araújo. Agência Brasil)

PORTO ALEGRE – No Dia Internacional da Mulher, colocamos à disposição dos leitores a entrevista com a ativista uruguaia Lílian Celiberti. A coordenadora da Iniciativa Mercosul da Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento lamenta a exclusão das mulheres dos fóruns decisórios da política latino-americana, e atribui isso ao ambiente de “cotoveladas” e à dupla jornada a que muitas estão submetidas, sem tempo para a participação mais profunda em determinados temas.

A conversa, realizada na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, precedeu o encontro da integrante do Coletivo Feminista Cotidiano Mulher do Uruguai com seu sequestrador. Na semana seguinte, Lílian Celiberti encontrou, em Porto Alegre, o ex-policial do Dops João Augusto da Rosa, que há mais de 30 anos levou a uruguaia até a fronteira de seu país, onde foi entregue ao Exército vizinho. Um dos casos mais conhecidos da chamada Operação Condor ganhou um novo episódio em fevereiro, quando a uruguaia foi chamada a depor a favor do jornalista Luiz Cláudio Cunha.

Leia mais:

>> Revista do Brasil edição 45 – Por que as mulheres marcham

>> Mês da Mulher, agenda e sugestões: confira os eventos em todo o país

O chefe de sucursal de Veja em Porto Alegre no fim da década de 70 ganhou um Prêmio Esso e ajudou a salvar a vida de Lílian graças a uma série de reportagens sobre a troca de prisioneiros entre os militares de países sul-americanos sob ditadura. A história de como ela foi torturada no Dops, com os filhos em uma outra sala no mesmo prédio, foi contada por Cunha, que agora é processado pelo ex-policial, que pede indenização por danos morais.

Sobre as dificuldades de o Brasil rever os crimes cometidos durante o regime militar, diferentemente de seus vizinhos, que estão tratando de julgar os responsáveis por torturas e mortes, a ativista aponta que é preciso ver se os brasileiros querem ou não condenar a violação das regras democráticas. Confira a seguir a entrevista.

Como estamos aqui na Assembleia Legislativa, gostaria de começar falando que acabamos de passar por um corredor que tem fotos de ex-presidentes daqui. E fotos de ex-deputadas – não ex-presidentes, mas ex-deputadas. E são muito menos as fotos de deputadas que as de presidentes da Casa. A que se deve isso?

Na realidade, em nossos países, Brasil, Uruguai, Paraguai, a maioria dos latino-americanos, com exceção da Argentina, que tem reserva de vagas, lamentavelmente é uma situação que se repete. O Brasil tem 15%, em nível nível não-nacional, de representação feminina, e não há países que superem os 30%, tirando Argentina e Costa Rica.

Temos um déficit enorme de representação feminina. Não é de participação, porque participamos de todos os movimentos sociais, comunitários, por melhora da educação, por respeito às crianças. Na temática em que quiser pensar, aí encontrará mulheres. Mas há uma exclusão das mulheres dos âmbitos de decisão e de poder.

Por duas razões. Uma é  que não nos somamos tão facilmente à composição política. Temos dificuldades – e são boas dificuldades – para a negociação no sentido tradicional em que se entende, que é às cotoveladas, desacreditando o outro. Não quero dizer que não há mulheres que não o fazem. Quero dizer que, normalmente, temos menos experiências nisso e por isso não fazemos. A segunda razão é porque nossa vida cotidiana está carregada de responsabilidades. Somos as cuidadoras do mundo, as educadoras de filhos, e portanto nossa vida está cheia de duplas ou triplas jornadas laborais.

Outra questão é  uma predominância de uma visão masculina excludente que considera que nós mulheres devemos estar em casa, e não na política, no espaço público, decidindo. Lamentavelmente, é uma visão ainda muito forte no caso dos homens, políticos sobretudo.

A esquerda está tratando, nos últimos anos, de refletir sobre seus próprios preconceitos. Sobre esse machismo, a esquerda tratou de refletir ou segue com preconceitos interiorizados?

Sim, absolutamente. Em alguns lugares, a direita teve mais habilidade para incorporar essa agenda cidadã e, na esquerda, segue existindo um padrão revolucionário com um imaginário feito de vozes fortes – bem, à parte a questão de que podemos ter vozes fortes e sermos muito passionais, me parece que existe ainda uma reflexão que não se vê na prática. Quer dizer que, na hora de fazer as listas eleitorais, não se consuma.

Temos muitas diversidades que não estão representadas. As mulheres negras, os homens negros, os gays, as lésbicas, transsexuais. Como fazemos para incorporar, dentro da esquerda, essas visões? Não apenas entendidas como uma questão de repartir o poder. Claro, me refiro à esquerda partidária, e não à cultura de esquerda, que é patrimônio de coletivos muitíssimo maiores.

A esquerda partidária não tem muitas ideias sobre como renovar seus discursos, suas lideranças. Por exemplo, se considera no campo de esquerda um Daniel Ortega [presidente da Nicarágua], que criminaliza os movimentos de mulheres por defenderem a capacidade e a liberdade de decidir. Pode ser de esquerda alguém que chegou a levar a julgamento nove feministas? Que as persegue?

Temos uma grande interrogação neste momento na América Latina sobre “o que é ser de esquerda”. Se proclama o socialismo do século XXI, como fez Hugo Chávez, ou se constrói? Construímos em milhões de práticas cotidianas. E isso desafia as esquerdas a retomarem o debate teórico e político sobre para onde vamos.

No Uruguai, quais são as especifidades desse movimento?

Muitas. Mas muitas semelhanças com o que estou dizendo. Temos a Frente Ampla que, como força política, custa a se renovar. Um setor dirigente sumamente envelhecido, jovens que não conseguem emergir como líderes políticos. Obviamente, as mulheres são a minoria. Nunca tivemos uma candidata a um cargo principal, seja local ou nacional, sequer uma vice-presidência. É algo que me parece terrível, mais ainda em um país onde, faz mais de 15 anos, 60% das matrículas universitárias são feitas por mulheres. Isso para falar apenas de formação.

Por outro lado, temos duas coisas que me resultam auspiciosas. O novo presidente uruguaio [Pepe Mujica] fala de algo que eu dizia que é o rol pedagógico que têm os governantes. E esse rol é porque podem comunicar e chegar até os confins dos territórios, às pessoas mais comuns, mais generalizadas, tem um poder de palavra que não posso ter eu.

Nisso, me parece que Mujica falou de alguma coisa que poderia ser elementar, mas não é, que é propor um governo de austeridade no uso dos bens públicos. Pode ser uma coisa que pareça menor, mas acho que são sinais necessários para aproximar governantes da gente que tem necessidades. Sentir que quem está no governo tem extrema sensibilidade com sua vida, seus problemas, reforça a esperança de mudança.

Quem vive com um dólar diário, por que vai querer salvar o mundo? Quem está sentado na rua esperando que alguém lhe dê uma moeda, sua visão de futuro é nada. Um jovem, como escutei na rádio, capaz de matar três pessoas para roubar dez reais de cada um. Não é simplesmente o fato de delinquir, é o fato de ser produto de uma sociedade suicida.

Esse ponto, como conectamos para criar novas esperanças em quem não a tem, é um dos maiores desafios comunicacionais e políticos que temos. Não poderemos criar outras alternativas se não somos capazes de gerar alguma esperança em quem nasce em uma favela. A pedagogia da palavra é fundamental. Não são casos isolados. São milhões. 

Muito se tem falado de que, enquanto não se faça justiça com o passado, não se pode romper com a hegemonia atual. Gostaria de ouvir sua opinião sobre o fato de que o Brasil não consiga responsabilizar militares envolvidos em crimes da ditadura.

Em relação a esse passado mais recente, dos anos 1960, 70 e 80, é uma dívida que, por mais que se queira sufocar, vai continuar saindo. Pensemos que a reconstrução alemã precisou também de seus momentos de emergência desses temas. Somos cidadãos deste mundo, por mais que não pareça e que os meios de comunicação me digam que devo esquecer.

Não vou esquecer. Não posso. Não quero. Não vou fazer somente eu. Farão meus filhos, que também não podem, pois forma parte de suas vidas. Se requer coragem cívica para enfrentar esse conservadorismo. Por que os militares que violaram os direitos humanos têm uma auréola? E aquele que rouba um pedaço de pão, levamos preso.

Não é só  a memória em termos de reconstruir o passado, é algo que tem a ver com a justiça do presente. Se estou dizendo que há cidadãos que são funcionários do Estado e que têm proteção, estou consagrando níveis de impunidade que levam outros a pensar: “Se os militares fizeram, por que não posso? Faço o que quero”.

Isso tem a ver com as regras de funcionamento democrático. As regras que temos estabelecem que há  uma Justiça, que há delitos, atos que são condenáveis. O assunto é: quer a sociedade brasileira condenar a tortura? Sim ou não? Como conquistamos mais cabeças para que mais gente diga que tortura, nunca mais? São debates que precisamos deixar sair, se espalhar.

Os jovens e as jovens brasileiras precisam se reconectar com seu passado, que não conhecem e que, por sorte, não viveram. Para, entre outras coisas, entender melhor a vida, a política e o futuro. É quase como uma responsabilidade elementar a da memória.

Por mais que se queira, esse tema vai ganhar espaço e tomara que tenhamos governantes que não silenciem. Porque houve por aqueles que silenciaram. Não são atos espontâneos. O que houve em 1979 (Lei de Anistia) foi consagrar um pacto de silêncio e uma proteção de quem havia cometido crimes.

Leia também

Últimas notícias