Um Estranho no Ninho: psiquiatra acusado de medicar presos em motim busca explicações

Rede Brasil Atual investiga as razões que levaram um militante dos direitos humanos a pedir exoneração da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo

A Rede Brasil Atual apresenta a partir desta segunda-feira (15) uma série de reportagens sobre a acusação feita ao ex-coordenador de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, Paulo César Sampaio. O militante da área de direitos humanos é investigado pelo Ministério Público Estadual (MPE) por supostamente ministrar remédios como punição a pacientes envolvidos em um motim. A primeira reportagem de “Um estranho no ninho” conta as acusações contra o psiquiatra e como a vida dele se transformou nas últimas semanas.

 

“Por que isso foi feito? É tão sujo e tão falso”. Faz pouco mais de um mês que Paulo César Sampaio tem na cabeça as mesmas perguntas e a mesma indignação, mas continua em busca de uma resposta para as causas de seu problema.

O psiquiatra, com 30 anos de atuação na área dos direitos humanos, é acusado de, na condição de coordenador de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo, ter utilizado medicamentos como punição a pacientes envolvidos em uma rebelião no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Dr. Arnaldo Amado Ferreira, de Taubaté (interior paulista) – também chamado de Casa de Custódia. 

Apenas no começo deste ano começaram a surgir na vida do médico as investigações sobre os fatos ocorridos na segunda quinzena de novembro de 2008 – a rebelião ocorreu entre 15 e 17 de novembro daquele ano, mas há mais de uma data citada em relatórios e depoimentos. O motim de poucas horas resultou naquilo que Sampaio está vivendo agora. Pacientes ouvidos pela reportagem informaram que as más condições da unidade, que deveria funcionar como hospital, mas na prática tinha um cotidiano prisional, foram a razão do motim.

“Era um horror, ficávamos trancados todos os dias, com banho de sol de quinta-feira, sábado e domingo por poucas horas (…) Qualquer ato que os funcionários achassem que era uma falta grave virava castigo [chamado de a ‘bolacha’], de dez a vinte dias trancados”, revela o depoimento de um dos internos à época, por escrito.

A péssima situação geral do local, somada a uma briga com facas entre dois detentos, fez explodir a pólvora que se acumulava na unidade. O motim foi encerrado horas depois. Sampaio, informado sobre os episódios, partiu no dia seguinte para Taubaté e iniciou o atendimento dos pacientes. Garante ter feito tudo na frente do diretor da unidade, Adriano César Maldonado, e de outros funcionários, erro do qual hoje se arrepende pois, se os encarcerados tivessem algo a dizer, ficariam intimidados em fazê-lo na presença dos diretores.

Se há males que vêm para o bem, o “erro” do psiquiatra poderá ser utilizado a seu favor. Sampaio descobriu, neste ano, que é investigado pelo Ministério Público Estadual (MPE) que o acusa de ter usado remédios como forma de punição aos envolvidos no motim.

Seriam, de acordo com os documentos, 80 internos a terem recebido a medicação. Pessoas que haviam sido transferidas à Casa de Custódia, local onde anteriormente funcionava o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), expediente transformado em “moda” ao longo dos anos 1990 e 2000 como forma de punição a presos considerados perigosos, que ficam privados de praticamente tudo.

“Achei interessante que é só a mim [que o MPE acusa]. Como eu, sozinho, iria ameaçar 80 pessoas e lhes dar injeção? Se eu atendia na frente de todo mundo, eles no mínimo são meus cúmplices”, reage Sampaio, descartando as acusações.

Denúncia

Em 28 de dezembro de 2009, o promotor Paulo Roberto de Palma, da Vara de Execuções Criminais de Taubaté, emitiu um relatório afirmando que, acompanhado do diretor Maldonado e de outros dois diretores, colheu o depoimento de três presos escolhidos “aleatoriamente.”

Daí por diante, o relatório de De Palma narra cenas dignas de ‘Um Estranho no Ninho’, livro de Ken Kesey cuja versão para o cinema, realizada em 1975, tendo Jack Nicholson no papel central, recebeu o Oscar nas cinco principais categorias.

A macabra narrativa de uma unidade manicomial onde pacientes eram punidos com medicamentos e choques até que passassem a estados deploráveis de consciência faz lembrar o relatório do promotor, que em determinado trecho diz o seguinte: “O preso, como consequência (da medicação), ficou lento, deixou de comer, de se barbear e cortar o cabelo, dizendo que, se não tomasse os remédios, o médico o obrigaria”. Esse detento, meses mais tarde, foi transferido em caráter de urgência para Franco da Rocha como “possível liderança” de motins. A transferência foi ordenada por Maldonado, que apresentou imagens de armas apreendidas com o encarcerado.

Os outros dois pacientes ouvidos pelo promotor seguem a mesma versão: de que, depois do motim, Sampaio teria forçado todos a tomarem remédios. Um deles chega a falar que um colega quase morreu, mas não se lembra o nome.

Pacientes ouvidos pela reportagem, no entanto, apresentam outra versão. “O Antônio (nome fictício) não ficou aleijado, ele fez um jogo. Falava que estava com tontura, mas eu morava do lado da cela dele e sei que não foi assim”, afirma um rapaz cuja identidade será mantida em sigilo. Outro, por carta, confirmou que a situação ficou muito pior depois da rebelião, mas não exatamente como relatado ao MPE. “Uma situação que era para ser simples durou quatro meses, com todos tomando remédio e banho de torneira, que nem bicho. Quando Dr. Paulo chegava lá, não deixavam ninguém conversar com ele em particular”, aponta.

Sampaio confirma que, na ocasião, ministrou remédios aos presos porque “o clima estava péssimo”, mas nega que tenha exagerado na dose como forma de punição e que tenha dado ordens de que a medicação fosse mantida por tanto tempo.

Ao encerrar seu relatório, o promotor De Palma lembra que sua visita “apenas se presta a auxiliar os Promotores de Justiça da Comarca da Capital (paulista) a providenciarem o de direito, sem qualquer objetivo ou mote conclusivo”. Nas semanas que se seguiram, o então Coordenador de Saúde da SAP não foi ouvido. O diretor da unidade, Adriano Maldonado, tampouco. 

As investigações foram dadas como concluídas pela Promotoria de Execuções Criminais de São Paulo no último dia 5 de fevereiro, resultando na abertura de um procedimento apuratório enviado à Vara de Execuções Penais e à Corregedoria Geral de Justiça.

Uma semana depois, também sem ouvir a versão do médico, o jornal Vale Paraibano tornou pública a investigação, o que levou o psiquiatra a apresentar seu pedido de exoneração. No documento do MPE, a versão era de que um paciente “mal conseguia andar, vegetando apenas”. Na versão do jornal, tal relato transformou-se em “perdeu o movimento das pernas e teve outras complicações que o levaram a ficar em estado vegetativo”. 

Em 22 de fevereiro, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publicou a saída de Sampaio do cargo de coordenador de Saúde. Ele tornou a dedicar-se exclusivamente à militância na área de direitos humanos, na qual representa a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat). 

O trabalho desenvolvido por ele no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha, no entanto, corre o risco de ser ‘esquecido’. É isso que você vai saber ao longo desta série, que na segunda reportagem tratará das versões dadas aos fatos por cada uma das partes.

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