Dimensão cultural do uso de drogas precisa deixar de ser ignorada

Pesquisadores e personalidades políticas apontam que há tabus enormes sobre o assunto que, se não for tratado com transparência, seguirá provocando mortes e totalitarismo

Plantações de coca como as do Chapare, região da Bolívia na qual Evo Morales se fez líder político, sofrem pressão da ONU. Políticos concordam que as áreas para produção de cocaína devem ser extintas, mas refutam erradicação (Foto: J Sailas. ONU)

SÃO PAULO – A aceitação de que os componentes sociais e culturais contam tanto na discussão sobre drogas quanto os aspectos médicos vem finalmente ganhando espaço na discussão sobre o tema no Brasil. Pesquisadores do setor e políticos entendem que houve um equívoco por parte do poder público em atribuir à farmacologia o tratamento de usuários, dispensando o caráter multidisciplinar do tema.

Henrique Carneiro, professor de História da Universidade de São Paulo, avalia que essa é uma das facetas que levam a um debate pouco claro sobre o tema, cristalizando as drogas como tópico da sociedade contemporânea sobre o qual há mais tabus e preconceitos.

O integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip) lembra que as tentativas de erradicação deixam de lado as questões culturais envolvendo substâncias consideradas alteradoras do comportamento: “A abstinência é uma atitude que se torna não apenas proibicionista, mas totalitária. Porque supõe a erradicação, a abolição, a desaparição de substâncias que são utilizadas há milhares de anos por milhões de pessoas e que se constituem, talvez, nas plantas mais importantes do ponto de vista cultural. (…) Uma sociedade que chegasse ao ponto de conseguir essa erradicação seria uma sociedade fascista.”

Da parte de alguns governos, aceita-se atualmente que a erradicação de certos cultivos é impraticável. A Colômbia, com apoio e pressão dos Estados Unidos, tenta há décadas encerrar suas plantações de coca, planta de uso milenar que dá origem à cocaína. O país registra dezenas de milhares de mortes pelo combate levado a cabo por sucessivos governos sem o devido acompanhamento de outras políticas.

A Organização das Nações Unidas (ONU), que defende a erradicação das culturas de coca, papoula e maconha, viu crescer vozes dissidentes. O presidente da Bolívia, Evo Morales, esteve no plenário da ONU defendendo o direito dos povos originários da América do Sul de cultivar a coca, folha que serve a rituais religiosos e hábitos culturais, como a mastigação para reduzir a fome e diminuir efeitos da altitude.

“Isto é uma folha de coca, não é cocaína”, afirmou, segurando um exemplar da planta. “Esta folha de coca é medicina para os povos, não é nociva para a saúde humana em seu estado natural.” Na ocasião, março de 2009, Morales foi aplaudido ao afirmar que a coca não pode ser proibida para a Bolívia se é livre para a Coca-Cola.

O historiador Henrique Carneiro reforça a posição de que as drogas têm um uso muito antigo, inclusive na formação dos Estados modernos e do atual sistema econômico. Defende Carneiro que as drogas, lícitas ou ilícitas, na medida em que serviam como pagamento por outras mercadorias e por escravos, trataram de integrar a formação das desigualdades entre a Europa e os países ditos periféricos.

Durante debate esta semana em São Paulo para o lançamento do livro “Drogas e cultura: novas perspectivas”, houve consenso quanto ao caráter econômico na lenta mudança da visão em relação às drogas. Agentes políticos admitem que não apenas a tentativa de erradicação é equivocada, como a criminalização desse sistema, que de imediato tem um efeito: uma atividade enormemente lucrativa sobre a qual não se arrecadam impostos – logo, parte do trabalho pela legalização passa a ser balizada pelo lucro.

Além disso, tratar sob o ponto de vista da repressão deixa de lado a questão dos danos individuais e coletivos. Por um lado, o sistema que trabalha com a redução de danos reconhece o direito de o usuário optar ou não por tratamento e, por outro, com a esperada redução da violência gerada pelo tráfico – no coletivo, a sociedade deixa de sofrer com tantas mortes e internações.

O ministro da Cultura, Juca Ferreira, aponta que não se trata de desconsiderar os riscos gerados pelas substâncias, mas de ampliar o debate sobre o tema. “A dependência não é apenas um fenômeno químico, é culturalmente adquirida. A relação com a droga é também uma atitude diante da vida. Urge uma política que respeite as diferenças culturais, com capacidade de garantir vida digna aos cidadãos, atuando na prevenção, no tratamento, na informação, na sensibilização e na proteção do dependente”, afirma, lembrando que a visão de consumidor como cúmplice precisa ser deixada de lado.

Edward MacRae, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e co-organizador do livro lançado esta semana, considera que há um aspecto medieval na discussão sobre drogas. “Na Idade Média, se achava que as drogas eram entidades satânicas que tinham uma vontade própria maligna. Hoje em dia, a forma como se trata a questão é a mesma, ou seja, é algo que funciona sozinho e visando o mal”, destaca, lembrando que a droga precisa de produção, comercialização e mercado comprador, ou seja, não se move por feitiço.

Mudança de posição

O debate marcou o reconhecimento de mudanças de posição. Jorge da Silva, da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia e do Fórum Viva Rio, admitiu que os anos trataram de mostrar que estava equivocado em achar que a questão das drogas se resolvia com repressão.

Policial militar da reserva, ele pensa que fazia o trabalho de “enxugar gelo”, já que a ação na área de segurança ignorava os fatores que, a cada dia, alimentavam o tráfico com mão de obra, ao mesmo tempo em que criminalizava o usuário.

“Sou a favor da descriminalização. Mas não consigo entender que você possa descriminalizar o uso e endurecer contra o tráfico. Na minha cabeça, não fecha essa equação. (…) Se não, a gente faz como aconteceu nos Estados Unidos. Na década de 1920, modificaram a Constituição para adotar a proibição do álcool. Dez anos depois, perceberam que tinham inaugurado o crime organizado”, ressalta.

Outro que admite a mudança de opinião é Fernando Henrique Cardoso, que declarou durante o seminário que, quando presidente do Brasil, acreditava na força policial como solução para o problema. “Tratamos de reprimir a produção de maconha em Pernambuco. Aconteceu o que acontece nessas situações: vai lá, erradica, prende quem pode e um ano depois estão plantando de novo e até ampliando. A experiência foi mostrando a inutilidade desse tipo de esforço. Foi mostrando que a repressão em si não resolve.”

Atualmente, depois de ouvir políticos colombianos e mexicanos, o ex-presidente entende que a lucratividade gerada pelas drogas é tão grande que a ação policial vai apenas forçar o surgimento de novas táticas e o deslocamento dos cultivos. Sobre os usuários, defende que haja algum tipo de sanção, mas não a cadeia, que vai apenas ampliar problemas. Ele considera ideal o modelo português, dando ao dependente a possibilidade de optar por tratamento.

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