DNA em ossadas de Perus é ‘vitória da civilização sobre a barbárie’, diz ativista

Autor do pedido de ação ao MPF, o Tortura Nunca Mais entende que identificação de restos mortais de mais de mil pessoas em vala comum ajuda a lembrar que ainda há torturadores vivendo às sombras do Estado

Em novembro de 1990, o arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, abençoou a vala comum onde foram encontradas as ossadas de presos políticos desaparecidos no cemitério Dom Bosco, em Perus. (Foto: Matuiti Mayezo/Folha Imagem)

O presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, em São Paulo, Carlos Gilberto Pereira, classifica como muito importante a decisão da Justiça Federal de determinar que as ossadas da vala comum do Cemitério de Perus sejam submetidas a exames de identificação. Em entrevista à Rede Brasil Atual, ele afirma que essa é uma boa oportunidade para mostrar que há gente preocupada pela responsabilização de torturadores que achavam que nunca seriam cobrados por isso.

“É uma vitória da civilização sobre a barbárie”, sustenta. O presidente do grupo que motivou a ação do Ministério Público Federal avalia que chegou a hora de entenderem que a ditadura acabou e que a atitude da instituição não é de revanchismo, mas de pedir que se faça justiça. A decisão se relaciona à luta pela abertura dos arquivos do período, a punição dos torturadores e a instalação da Comissão da Verdade, medidas amplamente criticadas por setores militares.

Sobre a recente declaração do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, de que a ditadura militar (1964-85) foi um “mal necessário”, Carlos Gilberto Pereira afirmou que “seria estranho se ele tivesse outra atitude”, uma vez que o Judiciário ainda é composto por “filhotes” do regime autoritário.

A vala comum de Perus, descoberta entre o fim da década de 1980 e início de 1990, ocultava 1.574 corpos. Como havia, entre os restos mortais, os de quinhentas crianças, grupos de direitos humanos calculam que 1.049 restos mortais serão submetidos a exames de DNA.

De acordo com a liminar concedida pelo juiz João Batista Gonçalves, da 6ª Vara Federal Cível de São Paulo, União e estado têm 180 dias para promover a identificação, devolvendo às famílias as ossadas daqueles em que fique descartado o assassinato político.

Confira a conversa que Carlos Gilberto Pereira teve com a reportagem na sede do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), no qual exerce o cargo de secretário.

RBA – Qual a importância desta decisão da Justiça que exige a identificação das ossadas encontradas no cemitério de Perus?

É muito importante. Primeiro, é uma reafirmação do Estado Democrático de Direito. Depois, há um grupo de pessoas impunes. O Estado tem de prestar conta para a cidadania, informar onde estão os mortos e desaparecidos. Tem de identificar também aqueles que trabalharam para que esses desaparecimentos ocorressem. Isso faz parte da luta que fazemos, que é a abertura dos arquivos, a punição dos torturadores e a instalação da Comissão da Verdade. É uma vitória da civilização sobre a barbárie.

RBA – Nesse momento em que há tanta discussão em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos, essa decisão ajuda de alguma maneira?

Ajuda porque o pressuposto da criação da Comissão da Verdade é exatamente a abertura dos arquivos. A identificação e a punição dos torturadores, de todos os mandantes. A identificação das ossadas de Perus e dos nossos mortos e desaparecidos é o primeiro ponto. Esses elementos que praticaram todos os tipos de atrocidades, que vivem na sombra do Exército, da Aeronáutica, da Marinha, e sempre reivindicando a impunidade.

A atitude corajosa do juiz e do Ministério Público Federal é fundamental. Os familiares, depois de tanto tempo, vão ter chance de enterrar seus mortos. Enquanto Grupo Tortura Nunca Mais, apoiamos completamente. Sabemos que identificar os corpos faz parte da nossa luta, é uma tarefa central.

RBA – O juiz manifestou em sua decisão que virar esta página da história significa identificar os corpos. Por outro lado, alguns setores têm dado ênfase ao pensamento de que virar a página da história significa esquecer o que aconteceu.

Esquecer é o que eles querem que aconteça. Mas não é possível. Quando você tem um familiar assassinado, vítima de todo tipo de atrocidade, e depois jogado em uma vala comum, é uma atitude de desrespeito. Eles achavam que isso jamais seria cobrado deles. Não é assim. Entenda, não temos uma atitude revanchista, mas de cobrar justiça. Estamos apoiando essa iniciativa corajosa, firme do Judiciário federal, e queremos contribuir para que tenha sucesso.

RBA – Sobre a responsabilização da União e do estado de São Paulo, por que eles não deram prioridade ao tema?

Não podemos julgar o passado. Vamos lembrar que agora estamos consolidando o Estado Democrático de Direito, coisa que não existia. Por outro lado, a sociedade civil organizada está cobrando e o Estado está reagindo positivamente a essa demanda. Da mesma forma, dentro desse processo todo, está nascendo um grupo de promotores e juízes, pessoas comprometidas com a Justiça e que não têm um vínculo tão grande com aquele passado.

RBA – O ministro Marco Aurélio Mello declarou que a ditadura foi um “mal necessário” para evitar o que ele classifica de “risco comunista”.

Não podemos esquecer que o Judiciário que está aí também é um filhote daqueles elementos da ditadura. Como nasceu dali, seria estranho se tivesse outro tipo de atitude, particularmente nessa área do Supremo Tribunal Federal. Entendo que está falando para aquele público dele, mas sabe muito bem que ditadura é a quebra do Estado Democrático. Então, não pode um juiz achar um mal menor essa quebra.

RBA – De alguma maneira, mostra que a revisão do período militar pode esbarrar nas instâncias maiores?

Para se sentir como é essa questão, na Espanha, apenas 75 anos depois da ação fascista de Franco, somente agora está sendo criada a comissão da verdade para identificar torturadores, assassinos sanguinários. O nome desses caras, que estava nas ruas, só agora está sendo retirado. A história está mostrando que eles terão de ser esquecidos, que eles não merecem respeito e consideração.

No Brasil, que tem uma história de esquecimento das pessoas, vamos ter de cobrar. No ano passado, lá em São Carlos, havia uma rua chamada Sérgio Paranhos Fleury. E a Câmara dos Vereadores, com a indignação da sociedade civil, mudou o nome dessa rua. Como vai homenagear um torturador, um assassino cruel? Hoje, essa rua foi batizada, com muita propriedade, como Dom Hélder Câmara. Vamos ter de renomear todos os monumentos em homenagem a esses ditadores. A ditadura acabou.