Lei das mulheres faz três anos

Marco dos direitos da mulher, Lei Maria da Penha coíbe a violência doméstica de toda agressão emocional, física e sexual cometida no ambiente familiar

A farmacêutica Maria da Penha foi homenageada por sua luta para condenar seu agressor com o nome da Lei nº 11.340, em vigor desde 22 de setembro de 2006 (Foto: ABr)

 “Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos, não vi ninguém. Tentei me mexer, mas não consegui. Imediatamente fechei os olhos e só um pensamento me ocorreu: ‘Meu Deus, o Marco me matou com um tiro’”, relembrou a bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes, que deu nome à Lei nº 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006 e que nesta terça-feira (22) completa três anos em vigor.

O autor do crime em 1983 que deixou Penha paraplégica é o pai de seus filhos, o economista Marco Antonio Heredia Viveiros, que alegou à época que o tiro foi disparado por ladrões; duas semanas depois tentou eletrocutá-la na banheira. Denunciado, o agressor foi condenado, apelou, teve o julgamento cancelado e, somente em outubro de 2002, meses antes da prescrição do crime, foi julgado e condenado a 19 anos de prisão, atualmente cumprindo em regime semi-aberto.

Em 1998, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos inquiriu o Brasil denunciando o Estado como “tolerante com a violência contra a mulher”. O país mudou a legislação, reconhecida atualmente como uma das mais avançadas do mundo no combate à violência contra a mulher. 

Em linhas gerais, a Lei Maria da Penha, responsabiliza família, Estado e sociedade pela garantia dos direitos da mulher, prevendo ainda a elaboração de políticas públicas para resguardá-los. Com ela, o Código Penal foi alterado e permite que agressores sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva decretada.

Outras medidas para proteger a mulher, como por exemplo, a saída do agressor de casa, a proteção dos filhos e o encaminhamento das vítimas e seus filhos para uma casa abrigo foram incorporadas.

A violência psicológica passou a ser caracterizada como violência doméstica e as penas que eram brandas  – como pagamento de multas ou cestas básicas – foram proibidas, sendo previstas penas de três meses a três anos de detenção, conforme proposição do Ministério Público. A Lei de Execuções Penais também mudou e prevê o comparecimento obrigatório do agressor a programas de reeducação. Outra inovação da lei foi determinar que, uma vez feita a denúncia, a mulher só poderá retirá-la diante do juíz. 

Cultura machista e patriarcal

O assassinato da jornalista Sandra Gomide pelo também jornalista Antonio Pimenta Neves, em agosto de 2000 é um exemplo da falta que fez o dispositivo de retirar a queixa somente na frente do juíz. Sandra não acreditou no pior e retirou a queixa contra Neves. “Ele era estúpido sexualmente e a chamava de vagabunda”, disse o tio da vítima, Carlos Roberto Florentino, em depoimento à Justiça ao descrever o agressor. A determinação de Sandra de romper o relacionamento acirrou a violência do jornalista, que passou a ameaçá-la, chegando a ponto de invadir o apartamento para espancá-la, meses antes do desfecho fatal.

Segundo Márcia Buccelli Salgado, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher do Estado de São Paulo, é preciso “divulgação maciça” quando se lida com um problema cultural e que envolve valores arraigados na sociedade, como é caso da violência contra a mulher. “A lei pede uma revolução de conceitos para se desmistificar a velha história de que a mulher sempre precisa respeitar. O problema é que ninguém ensina que ela precisa ser respeitada também”, diz. “Os homens ainda são criados na concepção de que ele é o galo que manda no galinheiro”, afirmou Márcia à Rede Brasil Atual.

Nilcéa Freire, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), afirmou que “a cultura machista e patriarcal, que permanece forte e arraigada na sociedade é evidenciada pelas resistências de implementação da Lei Maria da Penha”. “Isso se dá, sobretudo, na máquina do Estado de forma subliminar com o arquivamento dos processos, as declarações de inconstitucionalidade, as piadas e as brincadeiras.”, explicou a ministra.

Ligue 180
   

O serviço gratuito da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da SPM, registrou, de janeiro a junho deste ano, mais de 161 mil atendimentos – 32,36% de aumento em relação ao mesmo período de 2008, que teve 122 mil registros. São Paulo lidera o ranking nacional em números absolutos com 54 mil atendimentos, seguido pelo Rio de Janeiro, com aproximadamente 20 mil. Do total, 47,37% (mais de 76 mil contra 49 mil em 2008) deve-se à busca por informações sobre a Lei Maria da Penha.

Tipos de violência

O mais comum no Estado de São Paulo, segundo Márcia Buccelli Salgado, são as queixas de lesões corporais e as ameaças “de que vai bater, matar ou sumir com os filhos”.  Ainda segundo as estatísticas do Ligue 180, dos mais de 17 mil relatos de violência registrados, 93% são relacionados à violência doméstica e familiar, sendo que em 67% os agressores são, na sua maioria, os próprios companheiros. Violência física (9.283) e psicológica (5.734) estão no topo. Na maioria dos casos, as mulheres declaram sofrer agressões diárias (69,28%).

Chama a atenção os pouco mais de 800 casos classificados como dano emocional ou diminuição da auto-estima.  Segundo a SPM, a categoria foi inserida no sistema a partir de março deste ano para dar visibilidade a uma demanda recorrente que não está tipificada no código penal como crime, mas presente no discurso das mulheres que utilizam os serviços da Central. “Ameaça é um crime bastante elástico. Na cabeça de uma mulher às vezes é mais grave ‘vou sumir com os teus filhos’ do que dizer ‘vou te dar um soco na cara'”, exemplifica Márcia.

Em relação ao perfil das mulheres que usaram o serviço, a maioria é negra (43,26%); tem entre 20 e 40 anos (66,97%); é casada (55,55%), e um terço cursou até o ensino médio.