Polícia do RJ tem espécie de ‘licença para matar’, diz pesquisadora

Falta de visibilidade social e tolerância da sociedade à violência policial contra população pobre é responsável por concentração de autos de resistência perto de favelas. Cenário deve-se também à falta de políticas de segurança

A pesquisadora Leonarda Musumeci, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), acredita que o mapa da violência no Rio de Janeiro desmente ideia de que pobreza e violência têm uma relação direta de causa e efeito. Ela analisa o fato de haver comunidades pobres onde há baixos índices de homicídios mostra que os indicadores sociais e urbanos, por si sós, não explicam a distribuição espacial da violência. 

A entrevista concedida à Rede Brasil Atual se concentrou nos resultados de estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), divulgados em maio, sobre os locais de ocorrência de homicídio e de moradia das vítimas.

Entrevista

Leonarda Musumeci

pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)

A concentração de autos de resistência – vítimas fatais em suposto conflito com a polícia – é, na visão da economista, decorrência falta de política de segurança pública. Aliada à falta de visibilidade e tolerância da sociedade à violência policial contra população pobre, cria-se “uma espécie de ‘licença para matar'”, avalia Leonarda Musumeci.

Ela avalia que ações de planejamento urbano podem ter um papel importante para reverter o quadro de violência em muitas favelas, desde que seja combinada a políticas de segurança e de outras áreas que assegurem mais perspectivas para a população especialmente jovem. Por isso, Leonarda critica o fato de as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da área de infraestrutura social e urbana estarem bem menos avançadas do que outras áreas.

 

RBA – Uma das conclusões da pesquisa é que a maioria das vítimas letais no Rio de Janeiro são assassinadas em áreas próximas de suas casas. E há concentração de ocorrências em geral e de autos de resistência em áreas próximas a favelas e assentamentos precário. Qual sua avaliação sobre esse fenômeno?

“Essa elevada ocorrência indica que se confere à polícia, como disse, uma especie de “licença para matar” nas comunidades populares. Mas não creio que isso mereça o nome de política de segurança. A meu ver, é muito mais o resultado de uma ausência de política” – Leonarda Musumeci, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)

A pesquisa confirma que moradores de favelas e periferias são, via de regra, mais vulneráveis à vitimização letal, seja por parte do crime ou da polícia. Mas indica também que não há relação direta, do tipo causa-efeito, entre pobreza e violência, visto que muitas favelas e áreas socialmente vulneráveis apresentam baixas taxas de homicídios. A relação é indireta e poderia ser resumida da seguinte forma: onde os indicadores sociais e urbanos são ruins, é mais provável que haja condições para a instalação de grupos criminosos armados (traficantes, milícias e outros). A presença desses grupos, que controlam territórios e se impõem pela violência, seria o principal fator explicativo dos altos índices de assassinatos e de outras ocorrências criminais nas favelas e nos seus entornos. Além disso, a pouca visibilidade social das áreas de favelas e a tolerância da sociedade à violência policial contra os pobres conferem à polícia uma espécie de “licença para matar” nessas áreas – o que explica a concentração, aí, dos autos de resistência.

RBA – Os dados do instituto de segurança apontam, há alguns anos, que 20% a 25% de homicídios são cometidos por policiais. A elevada ocorrência de autos de resistência pode ser considerado um indicador da linha da política de segurança no estado (ou na cidade)?

Sem dúvida. Essa elevada ocorrência indica que se confere à polícia, como disse, uma especie de “licença para matar” nas comunidades populares. Mas não creio que isso mereça o nome de política de segurança. A meu ver, é muito mais o resultado de uma ausência de política, da presença de uma cultura “bélica” disseminada nos órgãos de segurança, e do baixo controle social sobre a violência e a corrupção policiais.

RBA – Qual papel as políticas de habitação e intervenções de urbanização de favelas têm para interferir nas políticas de segurança?

Isoladamente, nenhum. Habitação e urbanização podem ter um papel importante para a pacificação das favelas se articularem-se a uma política de segurança coerente e a outras intervenções sociais e culturais que ampliem as perspectivas das populações que residem nessas áreas, especialmente dos jovens. Obras urbanizadoras, por si sós, não desarticulam o tráfico de drogas, nem as quadrilhas de milicianos, não diminuem o número de armas em circulação, não reduzem os atrativos do crime para os jovens, nem modificam a cultura da violência que reproduz a nossa atual tragédia urbana. Um exemplo são alguns conjuntos residenciais populares do Rio de Janeiro, que se transformaram em focos de violência iguais ou piores que as favelas e assentamentos precários.

RBA – Nessa perspectiva, como a senhora avalia o fato de os investimentos em infraestrutura social e urbana do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) serem as que têm menor percentual de obras concluídas?

Considero uma lástima. Mas, do ponto de vista da segurança pública, também é profundamente lamentável o corte de verbas do Pronasci, o programa de segurança federal, que se propõe a reforçar os recursos dos estados e municípios para a redução da criminalidade e da violência.