Dito e Feito

O humor (não) é uma arma e o caso Zé de Abreu

Não acho que os chargistas derrubarão Bolsonaro ou Trump. Os chargistas mostram o lado ridículo dos governantes, o que pode convencer seus adversários de que eles são mesmo abomináveis

Twitter/reprodução – Beto Barata/PR

A auto proclamação do ator José de Abreu como presidente da República serve para mostrar que Bolsonaro exerce um mandato de forma ilegítima, contrariando os interesses do povo que diz representar

Quem estuda humor já ouviu, obrigatoriamente, pelo menos duas declarações: que o riso é humano e que sua função é castigar os costumes pelo riso (castigat ridendo mores).

Como sempre acontece às teses brevemente formuladas, demandam um trabalho de hermenêutica. Não seria difícil mostrar que nem sempre o humor castiga os costumes, especialmente porque “OS costumes” não existem: o que existe são costumes parciais, e aqueles que o humor castiga são apenas alguns deles.

Pode castigar os adúlteros ou os corruptos, mas o que é mesmo castigar os homossexuais, já tão castigados? Seria preciso uma biblioteca para explicar a frase (assim como ocorre com “penso, logo existo”). A conseqüência é que ela se tornaria ainda mais obscura.

Sobre o riso ser humano: parece que alguns animais riem ou sorriem (macacos, gatos?). Além disso, não sei se sabemos bem o que é humano. Deixemos esta tese de lado.

Há algumas décadas, quando a ditadura ia se enfraquecendo e finalmente caiu (caiu mesmo? depende de como se avalia o entulho autoritário…), alguns chegaram a pensar que foram os humoristas que a derrubaram, a turma do Pasquim à frente.

Mas é claro que as “causas” são mais complexas do que os efeitos da leitura de um jornal, por mais que alguma autoridade fosse gozada pela turma e isso provocasse diversão nos leitores (não sei se provocaria revolta, que é o que leva pessoas às ruas – ou ao voto).

Minha tese (antiga) é que os humoristas não dizem nada que já não se diz antes de sua piada, de sua charge etc. Um humorista é genial quando descobre uma forma peculiar de dizer o que é corrente. Mas eles não inventam um discurso.

Tudo isso é para comentar os movimentos do auto proclamado presidente Zé de Abreu. Toco no tema porque li, nas ditas redes, muita gente reclamando das esquerdas: que, em vez de irem para a rua, ficam comentando as pataquadas dos ministros, os tuítes do presidente e as andanças de Zé Abreu (especialmente essas), como se isso pudesse mudar as coisas.

O que se tem que fazer é agir, dizem esses comentaristas… Eles perecem reivindicar que não se pode ou não se deve fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo (um mês para as manifestações, um para o humor…).

Não vou discutir aqui a necessidade de ir às ruas, até porque de estrategista político não tenho mesmo nada, e, além disso, se tem uma coisa que não entendo é a movimentação do “povo” – o que o toca de verdade, o que o faria mudar de opinião etc. Aquela manifestação #ELENÃO, parece, deu com os burros n´água, quando parecia ser o ato que mudaria a eleição.

Ben Lewis escreveu um livro inteiro (Foi-se o Martelo, São Paulo: Record. 528 páginas) tentando avaliar o peso das piadas na queda da União Soviética. Descobriu coisas interessantes, mas não conseguiu decidir-se entre o que chamou de posição minimalista (as piadas existiam, eram contadas – às vezes davam cadeia –, mas eram só piadas, não destruíram o regime) e a posição maximalista (o papel das piadas foi importante para a queda do regime, porque punham à luz os problemas, os fracassos e também “destruíam” os governantes ao enfatizar seus pontos fracos).

Acho que as teses desse livro podem ajudar a entender o papel do humor numa sociedade, especialmente um certo tipo de humor em determinadas circunstâncias, como é o caso do humor político em uma fase como esta (e que fase!). Isto é, o livro ajuda a entender que não entendemos qual é esse papel – ou que ele é complexo.

Não acho que os chargistas derrubarão Bolsonaro ou Trump. Os chargistas mostram o lado ridículo de Trump e de Bolsonaro, o que pode convencer seus adversários de que eles são mesmo abomináveis e que seria bom que fossem embora.

Mas, se caírem, por impeachment ou por outras vias, não será por causa das charges. Será por causa dos temas e dos ângulos que as charges evocam – que, no entanto, já estão por aí, antes de as charges serem criadas, nos bares e bate-papos, sem contar que estão nas redes e em muitos artigos e notícias – onde os humoristas se alimentam.

Zé de Abreu não é Guaidó. Não está reivindicando o cargo a sério. Isso faz de sua movimentação um tipo de piada viva (uma comédia representada em suas andanças). Mas não é uma piada no sentido de que seu desempenho é ruim (que é um dos sentidos de “é uma piada”). É uma piada porque significa uma certa posição e de certa forma a ridiculariza: na Venezuela, um deputado se autoproclama presidente porque não reconhece a legitimidade de Maduro.

É um jogo “às veras”. Aqui, um ator se autoproclama presidente. É “às brincas”, mas nem por isso deixa de ser uma forma de dizer que há um mandatário ilegítimo.