Dito e feito

Erros de escrita, propositais ou não. Pixuleco é inflável ou inFlávio?

Erros ou problemas de escrita costumam ser tratados apenas sob a ótica da lei. Como se errar uma grafia significasse não ter conhecimento. Longe de apoiar o vale tudo, é preciso entender o fenômeno

Montagem sobre foto de Guilherme Santos/Sul21

A escola – mas também outras instituições, entre elas a imprensa – trata os erros, ou os problemas de escrita, a partir de uma única ótica: a da lei, isto é, dos decretos ou acordos que impõem uma e só uma forma de grafar as palavras.

Em geral, há também uma quase fobia, um exagero enorme em relação a sua importância, como se errar uma grafia significasse ausência total de conhecimento ou, pelo menos, de conhecimento da língua. Importa pouco, para tal viés, se a sintaxe e a morfologia vão bem. O que importa é a grafia.

Que não se leia isso como apoio ou defesa do que alguns chamam de “vale tudo”. Pelo contrário: trata-se de compreender o fenômeno, sem o que nem se saberia como ensinar…

Assim, só determinados erros são vistos e sua explicação é baseada no dicionário ou no último acordo. Mas há outros erros, que os estudiosos analisam, e que revelam fenômenos interessantes, mais interessantes do que aqueles que o sistema prevê. 

Consistem em (a) escolher letras com base na pronúncia real, seja ela regional, seja ela de base social, que afeta de maneira diferente os ricos e os pobres. Exemplos são as “trocas” de U por L; de E por I, de O por U, e vice-versa, casos que a sociolinguística explica muito bem; e em (b) escolher representações divergentes da norma que a psicolinguística explica, tais como separar palavras com base em algum critério, em uma análise intuitiva – (um) a gente –, ou juntar palavras (serumano), também segundo critérios relevantes e muito interessantes; e (c) errar propositalmente, para produzir determinados efeitos.

A escola só trata de problemas previsíveis a partir do sistema. Os exercícios são para fixar grafias com J ou com G, com S ou SS, SC, Ç, X, XC…, com H ou sem, com X ou com CH etc.

Mas os erros derivados dessa inconsistência do sistema ortográfico são menos de metade dos que ocorrem de fato. A outra metade, ou mesmo a maior parte, conforme a classe social e o grau de escolaridade, decorre de “problemas” que surgem de pronúncias locais, e afetam mais os alunos pobres, da zona rural ou das periferias das cidades (frequentemente de origem rural), porque sua língua materna é uma variedade distante da urbana predominante.

Grafias como mininu e curuja são comuns e deveriam ser consideradas “normais”, no sentido de previsíveis, esperados, na pena de escreventes com pouca experiência de escrita. Por isso, ocorrem tanto na escola quanto nas atividades de adultos que escrevem, embora tenham domínio precário da escrita.

Uma palavra como “peixe” apresenta dois problemas ao aprendiz: escrever com “x” ou com “ch”, e escrever com “i” ou sem, já que a pronúncia mais comum é pexe. Algo parecido se pode dizer de “faltou” (faltô), “começou” (começô). Observe-se que ninguém erra a grafia desses ditongos em palavras como “peito” e “oito”, porque elas não apresentam variações de pronúncia.

É instrutivo verificar que, antes de haver regras de uniformização da escrita, esta era variável e os fenômenos que hoje se encontram entre alunos no começo de sua vida escolar e/ou em adultos pouco letrados ocorriam na escrita dos especialistas como os gerais de ordens religiosas ou os cronistas da corte.

A palavra “imprimir”, por exemplo, ocorre com duas grafias (imprimir e emprimir) no documento que libera a impressão de Os Lusíadas, de autoria de Frei Jorge, que foi figura importante na Inquisição – e conhecedor da escrita… A variação da grafia permite uma hipótese não banal em relação à variação de pronúncia do “e” em posição átona já no século 16.

Em tempo: é importantíssimo verificar que as “trocas” de letras ocorrem em posições bem definidas: e/i e o/u são fenômenos que só se dão em posição átona (ninguém diz ou escreve voci (você) ou tinho (tenho); l/u, só ocorre em final de sílaba – autura (altura), locau (local); l/r, só em final – carça (calça) – e em meio de sílaba – craro (claro) etc.

Finalmente, também se pode “errar” propositalmente, para produzir certos efeitos, demandar interpretações. Quando Elio Gaspari fala dos çábios (do governo), pretende que o leitor entenda que essas figuras falam, pensam e fazem bobagens, coisas erradas, coisas de bobos. Quando Paulo Henrique Amorim escreve Fe-lha, escolhe essa forma para sugerir que o jornal que se chama Folha é pouco sério, erra ou é comprometido.

É ainda ele que se refere a uma jornalista como colonista (em vez de colunista), explorando a semelhança entre as duas palavras, derivando esta palavra de coluna e a outra de cólon… (cólon é parte do intestino grosso; assim, sugerem-se certos efeitos…)

O mesmo blogueiro refere-se frequentemente à Justissa, e não à Justiça, implicando que ela é pouco justa, uma justiça fajuta.

Enfim, a grafia não é uma arena na qual se disputa apenas o certo e o errado, mas um espaço de jogos mentais que podem ser sofisticados e investidos de significação. Especialmente quando são propositais.

O Enem podia incluir a questão em suas preocupações.

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Todos sabem da circulação de um boneco inflável representando Lula em nossa história política recente. Um dado essencial: ele estava vestido como um presidiário.

Em “Placas do Meu Brasil”, que permite encontrar erros ortográficos variados, que fazem a diversão de muitos (dos que não sabem analisar), encontra-se a grafia inflaveo para “inflável” – que se explica pelas variações de L e U em final de sílaba e de U e O em final de sílaba final átona.

Juntando as duas informações, pode-se interpretar de forma segura a circulação de um boneco similar, chamado “inflávio” ou “inFlávio”.