DITO E FEITO

Língua de Camões uma ova!

Por que temos que acreditar que uma variante da língua é superior a outra? E por que acreditar que línguas decaem?

Adriano Miranda/Publico

A “língua de Camões” sofreu mais mudanças em Portugal do que no Brasil, onde se preservam traços do português seiscentista

Uma das designações mais comuns daquela língua ideal que se acredita que todos deveriam falar é “Língua de Camões”. Esta forma de referir-se a uma língua imaginária (o dito português “culto / certo / correto”) indica duas coisas: que Camões seria uma espécie de fundador dela e que ele a criou segundo parâmetros que deveriam ser mantidos.

A “língua de Camões” é invocada sempre que alguém erra – ou seja, para dizer que estão pecando contra ela. Nunca é assim designada para elogiar um escritor que a siga ou um texto exemplar escrito segundo as mesmas normas.

Mas o que é a língua de Camões? Creio que ninguém pensa nos sonetos dele quando a invoca. Pensa-se sempre em Os Lusíadas:a uma língua monumento deveria corresponder uma obra monumental – e nada melhor que uma epopeia para dar forma a essa demanda.

De fato, nesse poema há construções majestosas, seja pela riqueza do léxico, seja pela sintaxe frequentemente ousada (Se sempre, em verso humilde, celebrado, Foi de mi vosso rio alegremente). Muitas passagens de Os Lusíadas não são só exemplos gramaticais, mas são também normas morais (Essas honras vãs, esse outro, melhor é merecê-los sem os ter do que tê-los sem os merecer). (Este traço faz lembrar o texto de Benveniste tratando da fórmula “Homo homini lupus”, em Problemas de Linguística Geral I).

Mas o poema também pode ser considerado um documento que informa sobre o português da época de Camões (fornece uma visão melhorada da “língua de Camões”). Independentemente de quanto o autor tenha “inventado” para produzir tal monumento em uma época na qual não havia ainda uma literatura “portuguesa” tão sólida e numerosa, o fato é que muitas das construções sintáticas e grafias indicam com certeza que era assim que falava a corte (e também o povo, em muitos casos provavelmente).

Vou me ater a dois ou três casos (todos os dados estão em textos reunidos em Objeto Língua, de Marcos Bagno, São Paulo: Parábola Editorial).

Primeiro, vai uma lista de palavras que hoje pensamos que são caipiras: antão, dereito, exprimentar, frauta, fruito, ingrês, menhã, mesturar, pruma [pluma], pubricar, rezão, saluço, simpres, treição, abastar, ajuntar, alembrar, alevantar, alimpar, amostrar, arrecear, arrenegar, assoprar (duas ou três delas sobrevivem com esta forma na dita língua culta, mas outro sentido – como “amostrar / assoprar”.

De todas estas formas, talvez a mais famosa está nos versos “Cesse tudo o que a Musa antiga canta / que outro valor mais alto se alevanta“.

Mas há outras construções no épico que levam a concluir que uma das teses correntes (que no Brasil estamos destruindo a língua) é grossa besteira. Refiro-me especialmente a duas: a próclise, hoje criticada, e proibida na escola (exceto se atraída por algum pronome ou palavra negativa), mas comum nos idos do século XVI, e na “língua de Camões” (e na língua do povo hoje, claro!).

Seguem os exemplos (da mesma fonte):… se pôs diante de Júpiter; lhe vá mostrar; lhe diz como eram gentes roubadoras; o Mouro… lhe prepara; malvado Mouro… lhe diz; Nós outros… te avisamos; porém eu… me detenho;…me respondeu; Nos deste; te contei; os esperem as ninfas (p. 142-3).

Mas antes da lista acima (que aparece no livro com dados contextuais mais completos), vem outra – com referências exatas – , que recito aqui, até para que possamos ler alguns versos de Camões, que muitos nunca leram, convenhamos:

Por estes vos darei um Nuno feio;

Da branca escuma os mares se mostravam;

A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde;

Mais abaixo os menores se assentavam;

Onde a gente belígera se estende;

Tão brandamente os ventos os levavam;

A gente se alvoroça, e de alegria;

O Pado o sabe, o Lampetusa o sente;

O Capitão sublime os recebia;

Os fortes Lusitanos lhe tornavam;

Isto dizendo, o Mouro se tornou;

A noite se passou na lassa frota;

A gente nos batéis se concertava;

Eis os heróis o fogo se alevanta;

O coração dos Mouros de quebranta.

A tese geral, que apresento simplificadamente, em relação ao que ocorreu com o português é que a língua mudou muito mais em Portugal do que no Brasil. Aqui se conservam muitos traços do português seiscentista – como muitas vezes já se disse, mas antes de maneira esparsa. A língua mudou mais lá mais do que cá.

Estes fatos deveriam permitir um debate mais inteligente tanto sobre ensino de português na escola (porque condenar a próclise, por exemplo, especialmente em nome do português de Portugal?) quanto sobre política linguística: por que temos que acreditar que uma variante da língua é superior a outra? E por que acreditar que línguas decaem?