dito e feito

Sobre Sergio Moro, ‘conge’ e indícios

Por mais que pareça estranho que alguém com aquele terno e aquela empáfia diga “conge”, pode-se (deve-se) tentar uma explicação para o caso no interior da gramática da língua portuguesa. E ela existe

Marcelo Camargo/Agência Brasil

É mais provável que Moro não seja um tipo letrado. É um pequeno técnico do campo jurídico

Segundo Carlo Guinsburg (em Mitos, Emblemas, Sinais – São Paulo, Companhia das Letras), existem dois paradigmas para a obtenção de “conhecimento” (científico, pode-se acrescentar, eu acho): o galileano – hipotético-dedutivo, formal, experimental; e o indiciário – abdutivo, baseado em indícios, a partir dos quais se produzem hipóteses que depois serão testadas segundo os métodos consagrados.

A mais poderosa e impressionante característica dos métodos hipotético-dedutivos é a previsão. Ela tem duas caras: se os fatos que se conhecem geram outros fatos em certas condições, então, dadas essas condições, tais fatos acontecerão (exemplo, os eclipses: o jornal informa local e hora; você pode se postar no lugar adequado e vai ver exatamente o que os jornais disseram dias ou anos antes que você veria).

As aulas de física sobre bolas de bilhar ilustram a tese (as aulas são sempre sobre coisas assim, o que produz cabeças de bilhar – variantes das cabeças de planilha em economia, feliz expressão de Nassif, que descreve bem os economistas que hoje estão em alta, mas que conseguem explicar no máximo jogos simplíssimos).

Previsões espetaculares reforçam este modelo. As de Eisntein estão entre as mais impressionantes – embora as mais interessantes não possam ser reproduzidas: quem pode reproduzir um eclipse e seus efeitos (que consagraram a relatividade, por exemplo) ou um buraco negro (mostrado há alguns dias, proeza físico-matemática fantástica, que só não convence os olavetes)?

Mas nem tudo é assim, sustenta Guinsburg. Em outros campos, como a solução de crimes, a explicação dos sonhos (inconsciente), e mesmo a medicina e a filologia (acrescentaria a análise de erros de escrita ou de variantes da fala), as previsões não são casuais, mas também não são categóricas, são apenas prováveis.

Consideremos o caso “conge”, que fez de Moro objeto de riso. A forma nunca tinha sido ouvida – que eu saiba. Se você a ouve com ouvidos virgens, aqueles que doem diante de uma pronúncia “estranha”, você vai ver na palavra um tipo de fenômeno, digamos, o despreparo intelectual de Moro. (se esta é sua conclusão, é bom que ter outras evidências deste despreparo, por exemplo, ter lido As falácias de Moro, do Prof. Mance, disponível na Internet). Se você tem um ouvido um pouco mais “treinado” – ou seja, uma certa prática no tratamento das variantes linguísticas que ocorrem em uma sociedade, sua recepção de “conge” será outra. Será, pelo menos, dupla: uma é a do tipo que se tem diante da descoberta de um novo planeta (guardadas as proporções). Isto é, primeiro estranha-se sua ocorrência, depois se tenta explicar o fato.

Por mais que pareça estranho que alguém com aquele terno e aquela empáfia diga “conge”, pode-se (deve-se) tentar uma explicação para o caso no interior da gramática da língua portuguesa. E ela existe.

Fatos da língua deste tipo, ou seja, a coexistência de duas variantes (como “chácara / abóbora” e “chacra / abobra” – vide “chacrinha” e “abobrinha”), envolvem um fator interno – no caso, a eliminação da proparoxítona em favor da paroxítona, pela queda de uma vogal posterior à sílaba tônica (chama-se a isso de síncope), e um fator externo, social, no caso, um grau menor de letramento.

De certa forma, pode-se dizer que assim se pode fazer previsões probabilísticas: quanto mais intensa tiver sido a escolarização de alguém, menor é a probabilidade de ocorrência de síncopes (“utro” por “útero”, “musga” por “música” etc.). O inverso também é verdadeiro.

Uma fase da análise do fato linguístico pode considerar a forma sem saber quem a produziu. Testes de atitude mostram coisas interessantes. Quem leu Os crimes da rua Morgue sabe do que estou falando (a voz do gorila assassino foi atribuída sucessivamente a diversos estrangeiros). Se um professor rodar a fala de Moro numa aula de sociolinguística sem informar quem é o falante, a maioria dirá que é um novo rico pouco letrado, talvez um ganhador de loteria que pouco esteve na escola.

Previsões do mesmo tipo podem dizer respeito a outros fatos, desde que influenciados por fatores análogos: por exemplo, quando menor a escolarização, maior a probabilidade de grafias como “otro” (por “outro”) ou de “colxa” ou “couxa” por “coxa” e, alternativamente, maior a probabilidade de que ocorra “cocha” por “colcha”.

Se o “treinamento” for precário, você verá aqui o fim da língua etc. ou a falta de capricho do brasileiro, quando, na verdade, trata-se apenas de um indício de que o falante esteve pouco tempo na escola, provavelmente por ser pobre e “escolher” trabalhar desde cedo.

A forma “conge” causou espanto por duas razões: sendo palavra técnica (erudita) do campo jurídico (ninguém se refere à/ao cônjuge com esta palavra em outros domínios) e sendo o locutor um juiz de direito com doutorado e professor universitário, a expectativa é que a palavra seja proferida em sua forma conservadora. Mas não o foi.

Assim, “conge” é um duplo indício: da produtividade da síncope (não só a regra funcionou na história do português, como ainda funciona) e da precariedade da cultura “erudita” de Moro.

Moro parece ser o tipo de leitor que não vê as palavras. Por isso ele fala “conge”, como se não tivesse tido longa vida escolar e uma prática com textos ainda mais longa. Os que adoram uma certa gíria “universitária” são um pouco assim: muita gente nunca lê “isso se trata” e “tratam-se de problemas…”, mas escreve estas formas numa boa, como se a escrita fosse uma secreção. Ou nunca leram que “Bakhtin traz”, mas “trazem” Bakhtin. Ou leem que um autor “postula / propõe / sugere / defende”, mas escrevem e falam que ele “coloca”. É uma falta de consideração com o significante!

O que fazer no caso “conge”?  Rir do Moro, evidentemente (Bergson explica). Considerar a hipótese de que a síncope se aplica mesmo que o falante seja “culto” é uma hipótese a ser considerada (as coisas começam algum lugar, afinal). Mas é mais provável que Moro não seja um tipo letrado. É um pequeno técnico do campo jurídico, que revela suas lacunas intelectuais muito rapidamente: é que não só nos deu “conge”, como chamou as “rusgas” de “rugas”, sem contar “sobre” por “sob” e “vim” por “vier” (estes casos são diferentes, o que mostra que Moro não é homem de um indício só).