Dito e Feito

Jornais: uma leitura picada

Ler jornais exige muito mais do que ler as manchetes e as matérias mais chamativas. O que pode alterar definitivamente a vida das pessoas aparentemente não tem nada a ver com as primeiras páginas

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Tornou-se quase um consenso que não se lê mais jornal para informar-se sobre acontecimentos, mas para descobrir como os diversos grupos sociais – que os jornais de certa forma representam – avaliam tais acontecimentos. As revistas semanais já assumiam este papel de certa forma. Como se se pudesse esperar uma semana por uma opinião (bem cara).

Exemplo: todo mundo já sabe, no final do dia, qual foi o vídeo partilhado por Bolsonaro, o que ele disse sobre militares e democracia, por onde andará Guaidó etc. Perdidas no meio dessas notícias momentosas, um pouco disfarçadas, e como se não tivessem importância, estão notas sobre medidas econômicas. Por exemplo, diminuição do ICMS para empresas automobilísticas – sob certas condições – e sobre combustível de aviação em São Paulo (como se sabe, a medida beneficia enormemente os mais pobres, que são os principais acionistas dessas empresas e os que mais viajam de avião).

Num jornal, as notícias estão desconectadas, dispersas. Dou dois exemplos. Acabo de ler a Folha. Numa página do caderno Economia, há breve notícia sobre projeto do governo para cobrar dívida com INSS. Contexto: sabe-se há alguns anos que os grandes devem cerca de 500 bilhões ao INSS. Muita gente cobra (acho que aqui vale esse verbo) que essa dívida seja paga, porque assim a reforma da previdência talvez não pareça tão escandalosamente necessária. Numa mesa redonda que discutia a reforma, há alguns dias, vi defensores do projeto de Guedes mencionando essa dívida e acrescentando, com um sorriso maroto, que ela é só uma dívida no papel, mas incobrável (salve, Magri!), porque muitas empresas que devem já faliram (citava-se a Varig, parece).

Muito bem. Se é assim, que os dados sejam apresentados corretamente, sem viés, por favor. Foi a impressão que me deu uma pequena matéria do jornal citado, que resumo: um tal Rolim, secretário da Previdência, diz que “há um mito sobre essa dívida”. Explica: dos 500 bi da dívida, cerca de 160 bi são irrecuperáveis, e 60 bi já foram parcelados e estão sendo pagos (não informa em quantos meses!!). Restam 100 bi (que conta é essa? Não deveriam ser 280?). E lá vem o argumento sempre repetido: mesmo que toda a dívida fosse paga, não cobriria o déficit, que vai para 300 bi por ano (arredondou para cima!).

Os números não são exatos, nem se informa porque as dívidas não foram cobradas no devido tempo (eu tenho que pagar todos os meses!). Mas já é alguma coisa que alguém do governo reconheça esse buraco, mesmo que o minimize.

Num outro caderno da Folha, Ilustrada, a coluna de Mônica Bérgamo informa na primeira notinha que a prefeitura de S. Paulo vai mudar as regras de autuação das empresas que devem impostos (o projeto passará na Câmara dos Vereadores?). Não vai mais autuar só as empresas, mas também seus acionistas. Assim, se evitaria que uma falência, por exemplo, cause prejuízo na arrecadação: os donos teriam que pagar.

Em suma: ler jornais exige muito mais do que ler as manchetes e as matérias mais chamativas. Como se aprende com historiadores dos últimos 60 anos, ou até mais, o que faz a história não é um golpe aqui e outro ali, mas as mudanças que muitas vezes nem são percebidas, mas que alteraram, para melhor ou para pior, a vida de quem aparentemente não tem nada a ver com os fatos que ocupam as primeiras páginas.