Novo CD do El Efecto traz moderno caldeirão de referências

(©reprodução) A letra parece saída de um livro de cordel. A música é uma mistura de rock pesado com xaxado, com a música que caracteriza as produções relacionadas ao cangaço […]

(©reprodução)

A letra parece saída de um livro de cordel. A música é uma mistura de rock pesado com xaxado, com a música que caracteriza as produções relacionadas ao cangaço brasileiro, como os temas compostos por Sérgio Ricardo para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, e com os temas da telenovela “Gabriela”, baseada na obra de Jorge Amado. Não há um melhor cartão de visitas para apresentar a banda carioca El Efeto do que o caldeirão de referências “O encontro de Lampião com Eike Batista”, que tem quase oito minutos e meio de duração e que, a certa altura, vira um tema de trio elétrico: “Tu pode comprar São Paulo e o Rio de Janeiro / Foto em capa de revista por causa do seu dinheiro / Ter obra no mundo inteiro, petróleo, mineração / Mas aqui nesse pedaço, quem manda é o rei do cangaço… / VIRGULINO LAMPIÃO!”.

Essa é a primeira canção do ótimo terceiro álbum do El Efecto, “Pedras e Sonhos”, cuja faixa-título é um misto de forró, rock e música mexicana, que conta com discurso do Subcomandante Marcos, considerado porta-voz do movimento zapatista no sudeste mexicano, e faz uma clara referência ao poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade: “Pedras são sonhos na mão, voam na imensidão / Ideias que ganham vida e criam asas / Voam na imensidão, meus sonhos minha canção / Pedras e sonhos são nossas únicas armas”.

A terceira faixa, “Adeus Adeus”, mistura as referências dos conjuntos vocais românticos, como Roupa Nova, com rock gospel, a música típica das igrejas norte-americanas e uma espécie de sermão com os gritos típicos dos pastores evangélicos. “Cantiga de Ninar” começa com a sugestão dada pelo próprio título, mas se transforma num rock com a cara da primeira fase dos Red Hot Chili Peppers e clara referência à música-tema da personagem Cuca, do programa de televisão “Sítio do Picapau Amarelo”, baseado na obra de Monteiro Lobato.

As duas canções seguintes são marcadas explicitamente pelas referências africanas – “Prelúdio em HD” e “N’aghadê”. Nada mais sintomático do que essa mistura da nossa ancestralidade musical com um título que remete ao atual mundo globalizado e com as relações cada vez mais pontuadas pela tecnologia. “A culpa é daquela tela que tá lá / Colocada lá no altar. Chibata que te lasca o lombo / Faz toda dor ser possível”, indica a banda na primeira. E parece completar a segunda, que termina com um rockão: “Bate palma pra humilhação em alta definição / Ela vem sussurrando em surround / Tu se rende no primeiro round / E até lá no meio do mato, naquela casinha de sapê / Bate palma, estica e puxa. E viva a festa da bruxa / A tecla SAP vai dizer qual é a língua do poder”.

A ótima “A caça que se apaixonou pelo caçador” é mais um caldeirão de referências, que vai novamente do trio elétrico ao metal e ao forrock dos Raimundos, passando pelo carnaval da Orquestra Imperial. “Admira o próprio carrasco, pois, no fundo, é ele que você queria ser / Pra pisar em todo mundo, inclusive naquele que no caso é você / Eu não aguento mais…”.

Em seguida, “Consagração da primavera” (que é o titulo de…) é marcada por uma espécie de melancolia a Los Hermanos, com o tom épico dos musicais teatrais e um clima romântico como o de Jorge Vercilo. Ela abre espaço para uma brincadeira com o clássico musical de Chico Buarque, “Os Saltimbancos”, em “Os Assaltimbancos”, que mistura uma cantiga infantil com alguns trechos bem hardcore, outros de big band jazz e mais alguns de comerciais de margarina: “A gata, a galinha, o jumento e o cachorro / Resgatam memórias que pedem socorro / Máscaras em nome de uma só voz / E no mundo dizem que são tantos como somos nós / O peso da terra, o preço da guerra, quem é que carrega?”.

Mas toda essa incrível mistura de referências musicais, políticas e literárias tornam-se ainda mais incríveis em função de terem sido muito bem realizadas por um time de craques – Tomás Rosati, na voz, percussão e clarinete; Bruno Danton, na voz, guitarra, cavaquinho e trompete; Eduardo Baker, no baixo; Pablo Barroso, na voz e na guitarra; e Gustavo Loureiro, na bateria. Realizado parte no Rio de Janeiro, parte em Orlando, o álbum “Pedras e Sonhos” também se destaca pelo excelente projeto gráfico e desenho da capa de Daniel Sake, que mostra duas crianças num descampado, de pés descalços e lenços nos rostos, e uma delas segurando uma arma. Na capa do encarte, a mesma garotinha armada, agora sem máscara, olha fixamente para o ouvinte.

O encarte é encerrado com a mensagem “Existem duas maneiras de não sofrer / A primeira é fácil para muitos aceitar o inferno / e fazer parte dele até o ponto de não percebê-lo mais / A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas / tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, / não é inferno, e preservá-lo e abrir-lhe espaço”. Portanto, é preciso dar vazão a esse “inferno” e reconhecer que há anos não aparecia um álbum tão impactante e que revisita com tantas variantes e de modo tão profundo as mais diferentes escolas da música brasileira dos últimos cinquenta anos. Vida longa ao El Efecto!

O vocalista Tomás Rosati conversou com a Rede Brasil Atual a respeito desse CD de estreia.

Como surgiu a banda e quais são as principais referências musicais de vocês?

Gostamos muito de música e nos incomodamos com o mundo tal qual ele é. A banda surgiu da ideia de conjugar esses dois sentimentos, de produzir algo estimulante e capaz de gerar inquietação, tanto política, quanto estética. Essa é nossa pretensão. Em relação às referências, a ideia é que elas estejam sempre se ampliando através da pesquisa musical. Buscamos mergulhar nas tradições de cada gênero e assimilar traços de suas linguagens. Nesse sentido, as fontes de inspiração são infinitas. Algumas mais emblemáticas são Karnak, Racionais MC`s, Rage Against the Machine, Revelação, Moacir Santos, Astor Piazolla, Chico Buarque, Faith no More…

Rede Brasil Atual – Como você deseja que o álbum seja recebido pelo público? Ou seja, como você avalia a imagem que os ouvintes terão da banda a partir da audição do CD?

Esperamos que as músicas possam gerar encantamento e, ao mesmo tempo, algum tipo de incômodo; que possam contribuir para o debate de ideias e, de alguma forma, manter acesa a chama da utopia, da necessidade de luta.

Rede Brasil Atual – Como tem sido a recepção ao disco até agora?

Tem sido boa. A maior repercussão que já tivemos nesses dez anos. As músicas tem circulado e isso ocorre graças a pessoas interessadas, que as estão passando adiante. Temos recebido críticas muito favoráveis, tanto das músicas, quanto da qualidade técnica e do trabalho de gravação e mixagem do Tomás Alem, que produziu o disco junto conosco.

Rede Brasil Atual – A intenção era mesmo criar um álbum em que todas as faixas fossem marcadas por uma grande mistura de ritmos e referências musicais e literárias? Por quê?

Esse sempre foi nosso princípio de composição. Mas percebemos que, especialmente nesse disco, acabou rolando um clima de “panorama geográfico”, como se cada música fosse um mergulho numa tradição musical mais típica de um “lugar”. Não foi algo planejado, mas, ao final, achamos que ficou legal, pois deu um sentido de unificação em torno de uma causa comum, já que as temáticas das letras convergem.

Rede Brasil Atual – Você acredita que, a partir de uma mistura tão ampla de referências, é possível criar uma sonoridade própria? Essa é uma preocupação para vocês?

Nossa grande preocupação é tentar utilizar as referências sem cair em um ecletismo fácil e banal. Buscamos fazer com que cada mistura tenha um sentido e uma organicidade dentro da ideia da música e tentamos construir isso a partir da coerência entre as escolhas musicais e a ideia da letra. Isso faz com que as músicas sejam, muitas vezes, diferentes entre si. Mas, ao mesmo tempo, estão ligadas umas às outras por terem esse princípio formal comum.

Rede Brasil Atual – Como surgiu a ideia de utilizar os ritmos africanos em duas canções, sendo que as letras remetem ao atual mundo globalizado? E o que você acha do resultado delas e quais eram as principais referências africanas de vocês?

As músicas “Prelúdio em HD” e “N`aghadê” são, na verdade, uma só. A ideia era abordar o tema da cultura da imagem. Escolhemos fazer isso associando a relação que estabelecemos com as “telas” – da TV ou do computador – como um tipo de feitiço e propondo um contra-feitiço de libertação dessa dominação. Por isso, tentamos buscar algumas referências que remetessem a um clima “ritual”, algo das religiões afro-brasileiras e dos ritmos derivados dessa tradição, como o Ijexá e o afoxé. Uma referência que sempre foi forte pra gente nesse sentido é a da música baiana, de bandas como Olodum e Timbalada, etc. De africano mesmo, uma influência direta foi o Soweto Gospel Choir. 

Rede Brasil Atual – “Pedras e sonhos” conta com o líder zapatista Subcomandante Marcus. Como surgiu essa ideia e qual é a relação de vocês com esse movimento?

Grandes movimentos organizados como o EZLN e o MST são exemplos de luta pra gente, iniciativas de resistência inspiradoras que, de alguma maneira, tentamos inserir nas músicas como forma de homenageá-los e de fortalecer um imaginário de unificação e solidariedade em torno de causas que, no final das contas, são sempre comuns. O Subcomandante Marcos é um personagem interessante nesse sentido, pois encarna, através do uso da máscara, uma simbologia de dissolvição da identidade individual, em nome de uma identidade coletiva. Esse é um conceito forte no disco.

Rede Brasil Atual – O repertório do show de vocês é composto apenas pelas canções do disco ou há algumas surpresas? Há algumas datas já definidas das próximas apresentações? 

Além do disco “Pedras e sonhos”, temos mais dois discos e algumas outras músicas. Todas elas podem ser escutadas e baixadas em nossa página www.elefecto.com.br. Em geral, os shows também passam por outras canções mais antigas. Faremos o último show do ano no sábado, 22/12, na Audio Rebel, Rio de Janeiro. Para o ano que vem, a ideia é conseguirmos circular bastante divulgando o lançamento do disco e estamos trabalhando nesse sentido.

Rede Brasil Atual – Como surgiu a ideia de criar o encontro de Lampião com Eike Batista? E você acredita que essa canção é o carro-chefe do álbum?

A ideia surgiu a partir do assombro diante de tantos casos de favorecimento dos interesses do grande capital em detrimento dos direitos da população; das privatizações do espaço público, das remoções… Então, seguindo a tradição dos encontros do cordel, escolhemos Eike como encarnação dessa máquina e Lampião como metáfora da resistência necessária. Como lançamos a música 5 meses antes do disco e ela acabou circulando bastante pela internet, sem dúvida é a música mais conhecida do disco. Digamos que ela tenha funcionado como um carro “abre-alas”.

[email protected]