Gal Costa canta inéditas de Caetano Veloso

Um dos lançamentos mais comentados neste final de ano é o novo CD de Gal Costa, “Recanto”, em que ela interpreta músicas inéditas compostas por Caetano Veloso especialmente para ela. […]

Um dos lançamentos mais comentados neste final de ano é o novo CD de Gal Costa, “Recanto”, em que ela interpreta músicas inéditas compostas por Caetano Veloso especialmente para ela. As principais marcas são a forte presença da música eletrônica e o fato de ser um trabalho em família. O próprio Caetano dirige a produção do disco, ao lado do filho Moreno Veloso, afilhado de Gal.

Segundo o compositor baiano, cujas composições para a amiga vêm de longa data, esse álbum era imaginado há cerca de três anos, mas se tornou realidade quando assistiu a um show dela em Portugal. Se pensarmos numa linha evolutiva da música brasileira, ele me parece um passo adiante com relação ao “Quanta”, de Gilberto Gil.

“Recanto” não é um trabalho de fácil e rápida assimilação. É preciso estar preparado para ele, sabendo que haverá alguns momentos da mais pura criatividade e experimentação, e outros mais ásperos, mas nem por isso menos belos. Porém, será difícil passar incólume a ele. É como se os artistas tivessem retomado a ousadia da década de 1970, com a mais alta tecnologia trazida pelos sintetizadores e a adição de guitarras distorcidas.

O símbolo maior desse trabalho é a primeira faixa “Recanto Escuro”, que começa com efeitos que lembram os ruídos dos antigos LPs e é marcada pelo violão de 7 cordas de Luiz Felipe de Lima e a letra forte, que remete aos tempos de ditadura militar nos anos 1970: “O chão da prisão militar/ Meu coração um fogareiro/ Foi só fazer pose e cantar/ Presa ao dinheiro/ Mas é sempre o recanto escuro/ Só Deus sabe o duro que eu dei/ Mulher, aos prazeres, futuro/ Eu me guardei”.

O rock psicodélico “Cara do Mundo” mistura música mais tradicional, trazida pela guitarra de Pedro Sá e a bateria de Davi Moraes, com a eletrônica dos sintetizadores de Kassin, forte presença no álbum como um todo. O artista entrou com perfeição nesse trabalho como um dos nomes mais criativos da música brasileira, que sabe como poucos estabelecer ligas mestras entre o ultramoderno e o retrô. “Cara do mundo, vim te reconhecer/ Cara de muito, dor de tanto prazer/ Abro meus olhos, abro meus braços, longe/ Fecho meu punho, fecho meu coração/ Cara de tempo, cara de escuridão/ Asa do vento, olho de sol, clarão”, canta Gal.

A crítica social aparece em “Neguinho”, que conta com o outro filho de Caetano, Zeca Veloso, na programação e nos sintetizadores: “Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si / Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho / Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo / Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo / Nego abre banco, igreja, sauna, sacola / Nego abre os braços e a voz / Talvez seja sua vez: / Neguinho que eu falo é nós”.

Outra letra de crítica ácida é “Sexo e Dinheiro”, que, na voz de Gal, se transforma quase num mantra: “Sexo e dinheiro são / Metro do nosso egoísmo / Embora os dois tenham / Bem pouco mais em comum / Veja os que dizem ser / Guias espirituais / Usam nosso temor / Para ter um ou outro ou os dois / Dinheiro e sexo são / Mera ilusão para tais / Cães”.

Mas a canção que mais me encanta é mesmo “Autotune Autoerótico”, que remete à tradição das cantigas nordestinas, exclusivamente por meio de equipamentos eletrônicos – a bateria, o sintetizador e a programação de Kassin, e o Rhodes e o sintetizador de Donatinho. Contando com o violão de Caetano Veloso, “Tudo Dói” tem uma sonoridade que remete a facas afiadas, totalmente de acordo com a letra visual ácida.

Também vale prestar atenção em “Miami Maculelê”, que traz a força da percussão baiana, referência ao funk carioca e a “Charles Anjo 45”, de Jorge Benjor; e sonoridade que remete às trilhas de videogames old school, como “Super Mario Bros”. Há ainda a presença da Banda Rabotnik, em “O Menino”; da dupla eletrônica Duplexx; do violoncelista Jacques Morelenbaum, presença certa em todos os trabalhos de Caetano, em “Mansidão”, que também conta com Daniel Jobim, ao piano. O álbum termina com o repente bem regional “Segunda”, que conta com a violão, o cello, o prato e a faca de Moreno Veloso. “Vou arrastar meu tamanco/ Que amanhã volto à peleja/ Quem não me mata me beija/ Mas ninguém morre de inveja”. Sensacional!

“Gal é uma das mais emblemáticas figuras da música popular brasileira moderna. Foi A cantora tropicalista por excelência: lançou ‘Baby’ e defendeu ‘Divino, Maravilhoso’ no festival (da TV Record) de 1968. Depois que Gil e eu fomos presos e exilados, ela segurou a estética ousada do grupo baiano (que tinha se associado aos paulistas Mutantes, Duprat, Medaglia etc.) em espetáculos como Fa-Tal, Gal a Todo Vapor. Seu nome batizou o trecho de praia mais badalado da Ipanema dos anos 1970. Ela foi considerada por Danuza Leão a mulher elegante daquele tempo.” Assim Caetano Veloso descreve, no encarte, a importância de Gal Costa para a música brasileira.

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