Livro mostra os dentes afiados dos poetas paulistas dos anos 60

Influenciados e tradutores da Geração Beatnik norte-americana, de Jack Kerouac e Allen Ginsberg, entre outros, Piva, Willer, Franceschi e Bicelli viviam a liberdade acima de tudo e tinham a inconsequência […]

Influenciados e tradutores da Geração Beatnik norte-americana, de Jack Kerouac e Allen Ginsberg, entre outros, Piva, Willer, Franceschi e Bicelli viviam a liberdade acima de tudo e tinham a inconsequência jovem à flor da pele (Foto: Reprodução da capa)

Na hora da dúvida que atormenta milhares de jovens brasileiros – o que fazer como trabalho de término de curso da faculdade –, as então estudantes de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, Renata D’Elia e Camila Hungria acertaram em cheio ao resolver relatar as aventuras e andanças de quatro marcantes poetas dos anos 60, em São Paulo. São eles: Roberto Piva, Claudio Willer, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli. O resultado é o valioso e indispensável livro “Os Dentes da Memória – Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia”, que acaba de ser publicado pela Ateliê Editorial.

O estilo remete imediatamente ao do ótimo “Mate-me Por Favor” (“Please Kill Me”), onde os jornalistas Legs McNeil e Gilliam McCain emendam diversos depoimentos uns aos outros de modo a contar a história do punk de modo bastante saboroso. Renata D’Elia e Camila Hungria obtêm resultado semelhante, ao escutar cerca de 50 personagens marcantes não só na trajetória dos poetas, mas para a cultura paulistana nas últimas quatro décadas. Esse é o caso, por exemplo, do artista plástico Guto Lacaz, do dramaturgo Antonio Bivar e dos editores Toninho Mendes e Massao Ohno, que, com a “Coleção dos Novíssimos”, foi o primeiro a publicar Roberto Piva.

Influenciados e tradutores da Geração Beatnik norte-americana, de Jack Kerouac e Allen Ginsberg, entre outros, Piva, Willer, Franceschi e Bicelli viviam a liberdade acima de tudo e tinham a inconsequência jovem à flor da pele, o que é flagrado com lente de aumento pelas jornalistas, em muitos depoimentos divertidos e revelações inusitadas, como o fato de sempre roubarem livros e de Bicelli ter sentido correr uma eletricidade quando transava com a namorada numa pia, tomando choques, sem saber.

Outra influência importante para eles foi o surrealismo, principalmente de André Breton, como explicou Piva a respeito do seu livro “Paranoia”: “É um imenso pesadelo. Transformei São Paulo em uma visão de alucinações. Apliquei o método paranóico-crítico criado por Salvador Dali: o paranóico se detém num detalhe e transforma aquilo numa explosão de cores, de temas, de poesia. Constrói um mundo alucinatório, imaginário”.

Mesmo poucas horas antes de morrer, Roberto Piva ainda era capaz de visões surpreendentes, como de Gilberto Gil vestido de Chacrinha com um papagaio no ombro, o que Renata D’Elia descreve num emocionante texto de despedida do poeta.

No final, ainda há uma coletânea com vários poemas, alguns deles inéditos, dos quatro poetas. Esse é o caso de “Profissão de Má Fé”, de Roberto Bicelli: “Os poemas devem ser gordos / e ter penas / como os frangos / os frangos tímidos dos quintais / os belos frangos / que ciscam o chão & / bicam os pés da urtiga”.

A obra também reúne documentos valiosíssimos para a compreensão de uma época e os reproduz ipsis literis, caso do manifesto “Bules, Bílis e Bolas”, de Roberto Piva, que, inesperadamente, funciona muito bem para convocar os leitores para as memórias de sua turma: “Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento. A Vida não pode sucumbir no torniquete da Consciência. A Vida explode sempre no mais além. Abaixo as faculdades e que triunfem os maconheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas,  contra vós deve estar o espírito da juventude. Abaixo a Segurança Pública, quem precisa disso? Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a Liberdade”.

Leia a seguir entrevista com a escritora e jornalista Renata D’Elia

Por que escrever sobre esses quatro poetas de São Paulo?
Vou contar uma historinha. Vi o Piva pela primeira vez num programa da TV Cultura dedicado a escritores paulistas, no aniversário de 450 anos da cidade. Ele aparecia no alto de um prédio na região central, lendo poemas do “Paranoia” (1963). Atravessei a casa em direção à TV e fiquei hipnotizada com ele e com a força dos poemas. Eu tinha uma ligação de amor e ódio com a cidade e, naquele momento, decidi que iria conhecê-lo e fazer alguma coisa por sua obra, foi pura intuição. Corri atrás dos livros e, por intermédio do Piva, fui chegando aos seus amigos, sobretudo às traduções que o Claudio Willer fez das obras de Allen Ginsberg e Lautreamónt. Em 2007, estudando jornalismo na Cásper Líbero, iniciei uma série de entrevistas com Claudio Willer, Roberto Bicelli, o editor Massao Ohno e, por fim, com o Piva. A Camila Hungria, que era minha amiga e colega de classe, leu essas entrevistas e um dia, numa mesa de bar, sugeriu que a gente fizesse um TCC sobre a turma, já que as histórias eram irresistíveis e inspiradoras. E já estava na hora de oferecer um material apurado sobre eles, que nunca se encaixaram no cânone do concretismo, vertente que aparelhava a imprensa e a academia paulista. Depois do TCC pronto e aprovado, fomos atrás da Azougue Editorial, que nasceu em torno da paixão do editor Sergio Cohn pela poesia dessa turma, entre outros grandes. E aí foram mais dois anos até a publicação do livro.   

Quais foram as principais lições ou exemplos deixados por esses poetas?
 Bom, essa coisa de “lição” e “exemplo” pode soar um bocado professoral ou politicamente correta diante da postura anárquica que eles cultivaram por toda a vida. Mas acho que o que fica, além da erudição e do diálogo poético com algumas das tradições mais românticas e transgressivas da poesia, são justamente os poemas encharcados de vivências igualmente românticas, eróticas, contestadoras e transgressivas, sem que isso se torne panfletário, doutrinário ou cerebralista. Não são apenas um bando de porraloucas metidos à beatniks. São poetas que realmente levam a sério a não separação entre poesia e vida, o que torna fascinantes suas vidas e obras.
 
Vocês acreditam que há neles um ímpeto e uma irresponsabilidade da dita juventude transviada que foi se perdendo com o tempo?
Difícil teorizar sobre isso, tanta coisa pra considerar!  Eles foram a tal da juventude transviada dos anos 1950 e 1960, e foram agentes desse tempo, como ainda são agentes dos tempos atuais, mas com atuação diferente. A era é outra, a revolução é digital e até o erotismo deste novo século já virou produto possível para os aplicativos da Apple. A roda da história foi forçando senão o desaparecimento, a repaginação daquela rebeldia e daquela irresponsabilidade juvenil. A rebeldia de agora está moldada às necessidades do nosso tempo: mais fragmentada, mais segmentada, e menos romântica, pelo menos aos nossos olhos nostálgicos. Mas acho razoável pensar que os ecos mais criativos e inovadores dessa revolução passada ainda possam nos inspirar e nos emocionar.
 
Quais foram os momentos mais prazerosos e difíceis na realização dessa obra?
A convivência com os personagens e as descobertas de cada entrevista foram muito gratificantes. Mesmo que não houvesse livro. Estávamos diante de um fluxo muito intenso de memórias e tínhamos um enorme quebra-cabeças pra montar, com responsabilidade e rigor jornalístico, ao mesmo tempo em que estávamos nós também muito apaixonadas pela história e pela maioria dos personagens, afinal, são dezenas de entrevistados e há ainda mais um monte de gente citada. Então, o aprendizado foi pessoal e profissional em altíssimo nível e achar o meio termo entre o afetivo e o técnico foi muito importante. Mais difícil de tudo foi lidar com alguns biombos de loucura e auto-indulgência criados por alguns personagens em torno de si mesmos, certas reivindicações de protagonismos dissociadas da realidade e alguns ataques de estrelismo que não nos assustam em nada hoje em dia.

O formato do livro é o mesmo de “Mate-me Por Favor”, que relata a história do punk, principalmente nos Estados Unidos. Vocês foram influenciadas por essa obra e é possível encontrar mais semelhanças entre os dois livros?
O “Please, Kill Me” foi uma leitura importante pra mim, no começo da faculdade. Uma maneira criativa, polifônica e dinâmica de se contar uma história com vários protagonistas, cheia de anedotas e com a necessidade de dar relevância igual a perspectivas diferentes sobre os mesmos temas.  Sempre me pareceu brilhante e muito eficiente a ideia de colher depoimentos e editá-los num formato de documentário, preservando a oralidade e dando a sensação de que todos os personagens estão dialogando (ou discutindo) na mesma sala, como fizeram o LegsMcneil e a Gillian McCain sobre a história do punk. Mas essa estrutura textual aparentemente “crua” esconde uma preparação de texto minuciosa, um trabalho muito criterioso de montagem que depende diretamente da qualidade da sua pesquisa e das suas entrevistas. Não é fácil de fazer, mas assumimos esse risco e creio que deu certo.
 
Como foram selecionados os entrevistados para o livro? Houve alguma entrevista que não conseguiram realizar ou que ficou de fora por alguma razão?
A coisa começa em torno do Piva, claro, uma figura absolutamente fascinante, magnética e complexa, dona de uma obra poética muito poderosa e que merece atenção urgente, para muito além de seu primeiro livro, “Paranoia”. A partir daí, selecionamos os outros três personagens principais, tendo como norte principalmente a confluência permanente de suas trajetórias ao longo das décadas, a amizade e as vivências em comum, a influência de um sobre as leituras e as escritas dos outros, a qualidade poética de cada um e o potencial deles como personagens de livros. O Roberto Bicelli, por exemplo, é uma descoberta e tanto: com apenas um livro de poemas, teve nesse grupo um papel importantíssimo e é por si só um personagem sedutor. Afinal, existe gente muito talentosa e competente por aí, mas nem todos são bons personagens para um livro, não dão o menor caldo ou interesse numa biografia. Esses quatro caíram como uma luva e nós percebemos isso desde princípio e fomos fieis à ligação entre eles. Outra coisa: não queríamos falar exatamente em “geração 60”, que também é uma divisão polêmica de se fazer, então vamos deixar isso na mão dos nossos especialistas. Também não gostaríamos que a história parasse nos anos 1960, queríamos trazer até hoje, pois há vivências, acontecimentos históricos, políticos, culturais e livros suficientes para isso de lá pra cá. Fizemos uma pesquisa grande não apenas sobre a bibliografia destes poetas, como de suas influências e de seus contemporâneos. Há certamente outros nomes importantes na Geração 60 de São Paulo que receberam apenas menções ou foram entrevistados sem protagonização. Muitos merecem ter suas trajetórias contadas e reconhecidas, e esperamos que esse trabalho seja feito futuramente. Mas selecionamos para este livro os entrevistados que mais tiveram contato com estes personagens em determinados momentos, ou que eram citados nas entrevistas e participaram de histórias importantes, e também aqueles que poderiam elucidar melhor alguns pontos e passagens. Por uma questão de foco, fluidez e edição, alguns personagens ficaram de fora. Outros simplesmente foram procurados e não quiseram dar entrevista, não puderam nos atender, ou nunca responderam nossos e-mails e telefonemas. Além do mais, nenhum retrato memorialístico, histórico, jornalístico ou biográfico é definitivo, completo ou contém toda a verdade da Terra. Aliás, nunca nos propusemos a isso. Quem quiser, pode partir em direção ao foco e ao viés que desejar, jogando toda luz nos personagens que julgar importantes. 

Por que vocês resolveram relatar os últimos dias de Roberto Piva no capítulo final?
Havia muitas informações desencontradas e pintou um certo sensacionalismo em cima da saúde do Piva em seus últimos sete meses de vida. “Conta-se um conto, aumenta-se um ponto”: isso aconteceu em tudo que é blog de gente que sequer conheceu o Piva pessoalmente. Por respeito ao que vivemos e presenciamos, resolvemos relatar o que apuramos e vimos, além de relatar uma pequena parte da nossa experiência com o Piva em sua jornada final para cruzar o espelho. Além do mais, o Piva era um poeta místico. E encaramos esse texto final como um perfil que até elucida pontos de sua personalidade pouco ou nada citados no livro. Creio que fizemos isso com respeito e espero que nossa admiração pelo incrível cavaleiro delirante tenha transparecido.   
    
Como surgiu a ideia de incluir uma coletânea de poemas dos quatro, alguns inclusive inéditos? E como foi feita a seleção?
A coletânea poética já existia na versão TCC entregue à Faculdade Cásper Líbero em 2008. Foi nossa ideia tanto para explicitar a tal junção entre poesia e vida. E também para tornar suas obras acessíveis a quem nunca os leu. O livro não é só para estudiosos do tema ou grandes leitores de poesia. Quisemos publicar um trabalho acessível, mas longe de ser simplista. Muitos livros desses poetas estão esgotados e são vendidos a preço de ouro, poucos podem comprar. E não tem coisa mais arrogante, burra e pernóstica do que fechar a porta para os novos leitores. Apostamos, portanto, na divulgação destes poemas e destes poetas, a coletânea é uma pequena colaboração. Além do mais, nossa editora já apostava nesse formato. Os poetas então nos ajudaram a fazer uma nova seleção, que também inclui inéditos e raros. 
 
O que os poetas acharam do livro? Aliás, eles tiveram acesso aos originais antes da obra ser publicada e, se sim, o Piva também chegou a ver o livro?
Todos adoraram, estão curtindo muito. Principalmente quando as pessoas dizem que todos eles eram uns gatos (risos!). Com exceção do Piva, que já havia morrido quando finalizamos a obra, todos tiveram acesso e não interferiram em nada, fizeram apenas algumas pequenas correções de datas/nomes após consulta em seus acervos. Camila e eu gostaríamos muito de saber o que o Piva achou disso tudo. Vamos ver se nos encontramos em sonho, e aí eu pergunto.

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