Literatura: “Alvo Noturno” parece se resolver no começo, mas só termina mesmo no final

Ricardo Piglia se vale de referências a jornais e à história argentina para romper a linha entre ficção e realidade (Foto: divulgação) São Paulo – Alvo Noturno, novo livro de […]

Ricardo Piglia se vale de referências a jornais e à história argentina para romper a linha entre ficção e realidade (Foto: divulgação)

São Paulo – Alvo Noturno, novo livro de Ricardo Piglia, parece se resolver nas primeiras páginas. Em ritmo acelerado, os personagens principais são apresentados, o centro da trama aparece – e parece resolvido antes que transcorra um quarto do romance policial. Mas é então que o autor argentino desacelera a narrativa, introduz novos protagonistas e passa a mostrar que a linha entre ficção e realidade pode ser menos que tênue: pode inexistir. 

Tony Durán é um porto-riquenho que chega a um povoado da Grande Buenos Aires provocando grande furor, que só faz aumentar quando se torna público seu envolvimento com as irmãs Belladona, jovens da família mais tradicional do lugar. O quente triângulo começa a expor o moralismo de uma cidade que, como se diz, vai de manhã à igreja e à noite ao “puteiro da Vesga”, ou vice-versa, mas se escandaliza com o romance a três. É a Argentina que vive o intervalo entre o autoritário governo de Juan Carlos Onganía, um novo golpe militar e a iminência do retorno do presidente Juan Domingo Perón, no começo da década de 1970. 

A trama muda de rumos com o misterioso assassinato de Durán, que coloca em jogo Croce, o comissário de polícia, e Cueto, o excêntrico e egocêntrico fiscal do Judiciário, com poderes de investigação. Croce não acredita na linha de investigação que aponta Yoshio, frágil descendente de japoneses, como responsável pela morte de um mulato – por isso vítima de desconfiança entre os gauchos. É rápida a atribuição do fato a um crime passional, e Cueto quer a todo custo tirar o comissário de polícia de circulação, o que, por fim, consegue fazer.

A esta altura, já está na cidade o repórter Emilio Renzi, de um diário de Buenos Aires, o que por si só causa frisson e movimentação no lugar. Renzi chega ao “povoado de merda” vindo de uma viagem a Mar del Plata, e se vê na obrigação de ficar para ver o que pode descobrir a respeito do assassinato – ou, se não puder descobrir, que insinue algo que faça aumentar a venda do jornal. 

"Alvo noturno", de Ricardo Piglia

Quando o trabalho de Renzi, o alter-ego de Piglia, parece próximo de chegar ao fim, com uma apuração inconclusa, ele decide ficar mais alguns dias, já acostumado ao ritmo local, e avisa os editores na capital sobre sua decisão. Croce, internado em um hospício, passa a apostar no repórter para seguir sua apuração. 

Enquanto isso, o autor vai jogando no texto informações que aproximam ficção e realidade, até que as coisas se confundam. De uma parte a outra da obra, passa de um narrador privilegiado a alguém que está vivendo os fatos em si – no caso, Renzi. Surgem a desvalorização do peso argentino e as dívidas decorrentes da depreciação da moeda, a especulação imobiliária e a cobiça despertada por essa especulação. A trama ainda tem muito por desvendar. E só se resolve no final.

Livro: Alvo Noturno
Autor: Ricardo Piglia
Editoria: Companhia das Letras
255 páginas
R$ 45