Em livro, vice de Morales vê Bolívia na reta final de etapa revolucionária

'A potencia plebeia', de Álvaro García Linera, é um retrato da complexidade dos processos vividos pela Bolívia desde a segunda metade do século passado

García Linera, ex-guerrilheiro, sempre foi visto como o elo entre o governo e as classes médias urbanas (Foto: Agência Boliviana de Informação)

São Paulo – Evo Morales é um dos frutos do colapso do sistema neoliberal da década de 1990. A Bolívia caminha em direção a uma bifurcação na qual terá de decidir se prefere fundar um novo Estado, mais democrático, ou retornar ao Estado anterior.

O livro A potência plebeia (Boitempo, 349 páginas, R$ 44) expõe um retrato da Bolívia dos séculos XX e XXI a partir da visão do vice-presidente Álvaro García Linera. Ou melhor, do sociólogo e pesquisador Linera, já que a grande maioria dos artigos compilados na obra foi redigida antes mesmo que ele fosse candidato na chapa de Evo Morales.

O vice reafirma sua condição de um dos grandes pensadores da realidade boliviana, mostrando-se ao mesmo tempo um intelectual clássico e orgânico. Nos textos de Linera, não é a prática que se vê encaixada em teorias pré-concebidas, mas estas que se formulam a partir da observação dos fatos ocorridos.

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A potência plebeia é um mergulho profundo, válido para os que se interessam pelos movimentos ocorridos por lá e recomendado principalmente para quem subvaloriza a complexidade social do país vizinho.  Linera enumera as transformações ocorridas, principalmente, na segunda metade do século passado.

Sem cidadania

O marco fundador das mudanças é a Revolução de 1952, que significa a ruptura com parte da república de Simón Bolívar, erguida sobre um conceito de cidadania hereditária que exclui o indígena da participação na vida nacional – até 1951, menos de 3% da população tinha direito a voto, apenas para citar um exemplo. Por outro lado, neste momento revolucionário as etnias majoritárias da população, influenciadas pelo profundo processo colonialista, sentem-se apenas no direito de reivindicar, mas não no de governar.

As classes trabalhadoras passam a se organizar basicamente em sindicatos rurais e urbanos, cuja união é sintetizada pela Central Obreira Boliviana (COB), apresentada como a forma de promover e assumir a cidadania legítima. É o momento das grandes massas operárias, reunidas principalmente nas atividades mineradoras sob uma existência coletiva.

Ao mesmo tempo, não há quebra de alguns dos princípios excludentes básicos da república. Como assinala Linera, continua vigente um Estado autoritário, que oferece a existência plena apenas aos que têm o domínio da língua estrangeira imposta, o castelhano. É só no governo Evo Morales que o aimará e o quéchua, idiomas que representam a maior parte da população, passam a ser oferecidos oficialmente por órgãos públicos. Isso significa que, anteriormente a isso, operações simples, como a requisição de serviços burocráticos, ficavam restritas aos que dominavam o castelhano. Mais que isso, defende o autor, a mobilidade social mostrava-se de absoluta dificuldade para parte dos povos originários.

Curiosamente, o mesmo presidente criador deste novo momento de inclusão parcial é o responsável por finalizá-lo. Victor Paz Estenssoro e seu Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) são os fomentadores do sindicato como representante da cidadania ao serem levados ao poder pela Revolução. Três décadas mais tarde, então eleitos, incentivam as mudanças neoliberais que guiarão a Bolívia durante outros quinze anos.

Linera entende que este é o momento em que a cidadania social se transforma numa mera cidadania política, restrita aos poucos minutos em que uma pessoa tem o direito de votar. O proletariado, a partir daquele período, predominantemente urbano, passa a uma existência individualizada e excludente. A Marcha Mineira de 1986, embora inspiradora por agregar trabalhadores em uma caminhada de centenas de quilômetros, fracassa de maneira retumbante, selando a sorte dos cidadãos até o fim da década de 1990.

Anos 2000

Superadas as ilusões do livre mercado e da privatização, inicia-se o período que, na avaliação do autor, ainda não está encerrado. Neste momento, não é mais o sindicato que tem condições de articular os anseios da sociedade, mas uma série de organizações coletivas comunitárias, como as associações de bairro (ou juntas de vizinhos).

A entrada em uma nova época revolucionária tem como marco o episódio conhecido como Guerra da Água, em 2000, quando a população de Cochabamba se revoltou contra a privatização do fornecimento de água, dando início ao sucessivo abreviamento de mandatos presidenciais, episódio relativamente comum na história boliviana. A cereja do bolo é a eleição, para um novo mandato, de Gonzalo Sánchez de Losada, presidente que mais bem fala o inglês do que o castelhano – a “fabricação” deste político por meio do marketing é contada no documentário Crise é nosso negócio.

As revoltas daquele ano, culminando na fuga do presidente, fazem com que a época revolucionária entre em seu momento decisivo. É então que Linera mostra seu poder analítico. “Mais cedo do que se imagina haverá uma recomposição duradoura de forças, crenças e instituições que abrirão um novo período de estabilidade estatal”, assinala em texto de 2004, anterior à eleição de Morales.

Neste momento, o autor prevê o embate entre o movimento indígeno-popular, que valoriza o mercado interno e o Estado como produtor, e o campo da restauração da velha ordem, representado pelo agronegócio e pelos detentores do petróleo. Com isso, delineia-se o confronto entre o Oeste do país, representado por essa vontade de uma democracia mais autêntica, e o Leste, que pretende por meio da política assegurar a manutenção do poderio econômico conquistado nas décadas anteriores. Alijados do poder a que estavam acostumados a gozar desde pelo menos 1985, os empresários do departamento de Santa Cruz adotam o discurso das autonomias departamentais, uma tentativa de manter seu controle, ainda que reduzido territorialmente.

Em síntese, Linera antecipa em alguns meses a tônica do país nos anos seguintes. Com a eleição de Evo Morales, prospera a primeira corrente, ao passo que a segunda parte para uma oposição limitada à porção oriental e que, em vários momentos, adquire cunho racista e separatista.

“Trata-se, portanto, de uma sublevação reacionária que está pondo em dúvida a viabilidade do Estado e, o mais perigoso, a sustentação material econômica de qualquer processo de reforma ou de transformações progressistas que desejem impulsionar os setores populares e indígenas do país”, argumenta Linera em artigo de 2005.

Os últimos anos têm dado razão a Linera. No único artigo redigido após a posse, o autor sustenta que a Bolívia se aproxima, então, de uma bifurcação na qual terá de decidir entre a sequência, com a fundação de um novo Estado, ou a restauração da ordem anterior. Por enquanto, a primeira hipótese vai se consolidando.