Desenvolvimento em foco

Moeda comum entre Brasil e Argentina: o desafio de se criarem as condições para a inovação

Ainda é cedo para concluir se a adoção de uma moeda comum é maléfica ou benéfica. Ainda será preciso muito estudo e muita conversa

Ricardo Stuckert/PR
Ricardo Stuckert/PR
Chefes da área econômica de Brasil e Argentina se encontraram em janeiro

A proposta de criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina, extensiva ao Mercosul, ocupou o noticiário recentemente e acendeu o debate sobre os riscos, benefícios e desafios de sua implantação. A ideia foi discutida em recente encontro entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu colega argentino, Alberto Fernández. Em nota técnica que será publicada na 25ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Uscs), teci breves considerações sobre as relações comerciais entre os dois países, contexto econômico e comercial e viabilidade política da implantação da moeda comum.

A nota aponta que o principal desafio não é sua adoção, mas a criação das condições políticas que atendam aos interesses das duas nações. Aponta também que se trata de um embrião para a construção de um projeto ainda mais ousado: a criação de uma moeda única no continente sul-americano.

O recente anúncio dos presidentes do Brasil e Argentina em torno da criação de uma moeda comum entre os dois países tem gerado muitas dúvidas e desconfianças entre os mais diversos setores da sociedade. A proposta não tem nada a ver com algo similar ao euro, moeda utilizada entre 20 países do continente europeu. Pelo menos por enquanto.

Brasil e Argentina são os dois principais parceiros do Mercosul (área de comércio comum que estabelece tarifas de importação comuns aos países do bloco, com Uruguai e Paraguai). O Brasil tem peso relevante no comércio. O país exportou US$ 240 bilhões em 2020 e a Argentina, US$ 65 bilhões. O comércio brasileiro é quase seis vezes o volume do comércio argentino, evidenciando a importância do Brasil para a economia argentina. Ambos os países têm relevância na exportação produtos primários (agrícola e minério), veículos e serviços para o mundo.

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A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, com volume exportado de US$ 9 bilhões de dólares por ano (2020); enquanto o Brasil é o primeiro parceiro comercial da Argentina, com volume exportado de US$ 9,8 bilhões (2020). O Brasil exporta para a Argentina produtos de média-alta densidade tecnológica (veículos e químicos), enquanto a Argentina exporta para o país produtos de baixa-média tecnologia (agrícolas, minério, química e veículos). Nos últimos dez anos, o fluxo de comércio entre os dois países se intensificou na troca de veículos e químicos.

Os dois países têm praticamente o mesmo volume de comércio, mas suas transações são feitas em moeda americana. A proposta de criar uma moeda comum, de uso exclusivo entre os dois países, visa suspender a utilização do dólar como moeda intermediária. Pela proposta, haveria chances de aumentar o comércio entre os países, que nos últimos anos tem sido desviado para China, enfraquecendo o fluxo comercial entre os dois países.

Com uma moeda comum, cujo funcionamento ainda não está claro (quem emitirá, quem controlará, quanto valerá), os países ficam menos expostos à dependência do dólar e podem vender e comprar diretamente entre si. A título de exemplo, um empresário argentino que exporta um motor de US$ 1.000 para o Brasil; e um empresário brasileiro que exporta uma máquina de US$ 2.000 para a Argentina.

Pelo câmbio argentino, esta máquina brasileira custaria 370 mil pesos para o importador argentino; e pelo câmbio brasileiro, o motor argentino custaria R$ 5.200 para o importador brasileiro. Atualmente, com a adoção do dólar como moeda de intermediação, a Argentina teria um déficit comercial com o Brasil de US$ 1.000 (US$ 1.000 recebidos pela exportação do motor menos os US$ 2.000 pagos pela importação da máquina).

Discussão preliminar para criação de uma moeda comum

A questão central é que, não tendo a Argentina os dólares disponíveis – situação vivida pelo país atualmente em razão dos sucessivos problemas de pagamento de sua dívida externa –, as chances de calote se elevam. A adoção da moeda comum, em tese, eliminaria essa “fragilidade” em dólar, pois permitiria aos países negociarem utilizarem da moeda comum sem a aplicação de uma taxa de conversão.

Como a Argentina tem baixa reserva em dólar e reduzida credibilidade internacional – o que compromete o ingresso de novos investimentos estrangeiros capazes de ajudar no pagamento de suas importações – a única forma de formar reservas é via exportação. Se tal caminho exige manter o preço de dólar muito alto para garantir competitividade aos produtos argentinos no exterior, por outro lado agrava o problema da inflação interna porque as importações passam a ficar mais caras.  

Assim, a criação de uma moeda comum visaria neutralizar a dependência do dólar, evitando seus efeitos inflacionários internos – de um lado – e fortaleceria a parceria comercial entre os dois países, de outro. As diferenças de valores seriam eliminadas com a adoção de uma moeda comum, que já vem sendo chamada de sur (por que não merco?)

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Mas o caminho para a criação do sur não é fácil. Muitas questões ainda estão em aberto:

  • 1) Quem emitiria a nova moeda?
  • 2) Qual seria sua cotação?
  • 3) Como se harmonizariam as políticas econômicas dos dois países? A taxas de juros – importante instrumento de controle da “temperatura” do consumo e da produção interna, operaria como?
  • 4) Como se comportariam os custos internos de produção nos dois países? Por exemplo, o motor e a máquina, caso produzidos pelos dois países, teriam custos de produção e preço similares internamente?

Diante das dúvidas, ainda é muito cedo para concluir que a adoção de uma moeda comum seja maléfica ou benéfica para qualquer um dos lados. Ainda será preciso muito estudo e conversa para se chegar a um denominador comum. Mas, preliminarmente, é possível inferir que o Brasil – sendo metade da economia da América do Sul – teria muito a ganhar. A nossa complexidade industrial e agrícola é oportunidade de ampliação das exportações, o que geraria mais renda e importações dos parceiros comerciais latino-americanos, retroalimentando um ciclo econômico favorável para todos os países do bloco.

Moeda comum ou moeda única? Existem diferenças, e muitas

A construção de uma moeda única é, sobretudo, um grande projeto econômico conduzido por fortes ambições políticas. É importante que a América Latina avance para a criação de sua moeda única. Isto daria mais força ao bloco nas negociações bilaterais internacionais (Nafta, Zona do Euro etc.).

Além disso, permitiria aos países membros formarem reservas internacionais em dólar, euro e yuam. E ampliaria sua força nas negociações comerciais que envolvem tarifas, direitos de propriedade sobre tecnologias e prática de subsídios dos países desenvolvidos a produtos nos quais países do Mercosul são mais competitivos, a exemplo do agrícola. Permitiria também explorar suas vantagens competitivas internas. Por exemplo, trigo na argentina mais barato beneficiaria aqueles países dependentes do trigo; e automóveis no Brasil mais competitivos, beneficiaria os países dependentes de veículos.

Ainda que as perspectivas sejam favoráveis, o maior desafio será harmonizar/coordenar as políticas econômicas internas (controle da inflação, do déficit público e da dívida externa do conjunto de países do bloco). Para que uma eventual moeda comum seja estável, soberana e crível, uma boa dose de ambição política – combinada com aprimorados estudos econômicos – elevará o patamar de desenvolvimento dos países do continente.


Volney Aparecido de Gouveia , economista, é gestor-Adjunto da Escola de Gestão e Negócios ecoordenador do curso de Ciências Econômicas da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Uscs). É doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Autor do livro A Economia do Transporte Aéreo no Brasil: Novos Ares para o Desenvolvimento da Aviação (Editora Didakt, da Uscs).

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