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Bolsonaro e Americanas têm algo em comum: a ‘contabilidade criativa’

A arte de empurrar pagamentos para o futuro para fechar o balanço é o denominador comum entre o governo que terminou e a empresa que está na mira da justiça

Nessas últimas semanas vivemos aqueles festivais de números pouco confiáveis – e desmoralizados – no país. Não vou abordá-los na ordem cronológica, mas em uma ordem de importância frente aos impactos causados. Em nota técnica na próxima Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Uscs) está prevista a republicação, com ajustes, de artigo que publicamos no blog Terapia Política. Aqui uma síntese daquele artigo.

Em 26 de janeiro, tivemos a revisão dos dados do mercado de câmbio contratado feita pelo Banco Central do Brasil para o período de outubro de 2021 a dezembro de 2002. Portanto, mais de um ano. Para 2021, essa revisão apontaria uma diferença (a menor) de cerca de US$ 1,7 bilhão e para 2022, de cerca de US$ 12,5 bilhões.

Só para se ter uma ideia, com o erro, o fluxo do ano de 2022 passa de positivo a negativo. O Banco Central assumiu o erro e se desculpou, através de seu chefe do Departamento de Estatísticas.

O erro, entretanto, com a divulgação de um superávit para 2022, não é neutro. Porque teve impacto nas expectativas em relação ao dólar estadunidense, talvez evitando uma maior desvalorização do real. Assim, independentemente de ter sido um erro, alguém ganhou e alguém perdeu com esse erro.

Evidentemente, para além das considerações internas do Banco Central sobre o tema, seria necessário que as autoridades econômicas avaliassem também os motivos do erro (que não foi casual, foi sistemático por um largo período). E também suas consequências para os agentes econômicos que se relacionam de alguma maneira com a taxa de câmbio, sob risco de se perder a credibilidade na taxa de câmbio, nos fluxos cambiais divulgados, e no próprio volume de reservas do país, o que seria extremamente grave.

Risco sacado

Outro erro dramático, foi a divulgação pelo principal executivo da Americanas naquele momento, Sérgio Rial, de “inconsistências contábeis” da ordem de R$ 20 bilhões. De acordo com Rial, o acúmulo ao longo de alguns anos se deu pelo fato do “risco sacado, que não era lançado como dívida”. Segundo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o “risco sacado” consiste em uma modalidade de antecipação de recebíveis.

Ou seja, “a companhia vendedora emite uma fatura que contempla o prazo a ser financiado pelo banco. Porém, não reconhece em sua contabilidade a venda pelo valor presente. E com isso apresenta um resultado “Ebitda” (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) maior”. Desta forma, a Americanas, como empresa compradora, conseguiu distorcer sua real situação financeira.

contabilidade criativa
Inconsistências contábeis que deflagraram a crise nas Lojas Americanas foram de R$ 20 bilhões (Foto: José Henrique Kautzmann)

Essa é uma possível explicação, e está sendo apurada. Mas dado o volume de recursos envolvidos, o caso ganha contornos legais bastante expressivos. Isso porque, de outro lado, além dos fornecedores, estão grandes bancos que financiavam as operações. O BTG Pactual tomou a frente nos questionamentos, mas foi na sequência acompanhado por Itaú, Bradesco e Santander, só para ficar em alguns. Briga de cachorro grande, sabendo que os controladores da Americanas (o conhecido trio de aplicadores Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira) são megainvestidores do mercado de ações, também controladores de várias empresas.

Falando em mercado de ações, o valor das ações da Americanas derreteu na bolsa, levando também a imensas perdas de aplicadores em geral. É importante considerar aqui que o trio de controladores é famoso no mercado pela enorme capacidade enorme de transformar em ganhos sua gestão de aplicações. Assim, funcionavam como uma espécie de “farol” para outros investidores, em especial menores.

Perda de confiança?

Desse modo, se pela via judicial ou da negociação talvez as grandes instituições financeiras salvem uma parte de suas perdas, é possível que os pequenos e médios investidores terminem com uma perda monumental. E pelo “risco reputacional”, ou seja, o risco que vai passar a estar associado às figuras de Lemann, Telles e Sicupira, é possível que várias outras empresas que controlam ou têm aplicações substanciais tenham perdas consideráveis também.

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Vale observar que os problemas iniciais que vieram à tona com a divulgação do passivo das Lojas Americanas vêm se ampliando desde então, o que pode levar à perda de confiança no sistema de contabilidade e auditoria no país, inclusive suas empresas.

Além disso, existe a possibilidade de, na medida em que o sistema financeiro for registrando perdas e fazendo provisões para essas perdas (e, de fato, reduzindo seus lucros), essa crise de confiança resultar em uma crise de crédito, com as empresas do sistema financeiro nacional ficando mais e mais restritivas e seletivas, e dessa forma, aumentando a dificuldade das empresas, inclusive para suas atividades cotidianas, através da redução do capital de giro disponível.

Neste sentido, é particularmente preocupante a fala do presidente do Bradesco na divulgação de seus resultados contábeis, impactados por essas operações com redução de lucros, onde explicitamente se falou em seletividade e redução dos créditos.

O mercado de ações começou quente, a ponto de derreter valores e reputações nesse início de ano, mas o resultado final vai depender dessa briga de cachorros grandes. Só mais um elemento aqui: a “contabilidade criativa” do setor privado nesse caso vai levar junto também a reputação das empresas de auditoria, que aprovaram sem ressalvas os números da contabilidade apresentados ao longo de anos pelas Americanas.

A contabilidade criativa de Bolsonaro e Guedes

E por falar em “contabilidade criativa”, um rombo várias vezes maior foi apresentado pelo governo Bolsonaro. Esse rombo, sujeito a uma disputa de “narrativas” daqui para a frente. A contabilidade de Paulo Guedes e Bolsonaro apresentou resultado positivo, para o governo central (não inclui níveis subnacionais, os estados e municípios, e nem as empresas estatais) de R$ 54,1 bilhões no ano de 2022, revertendo uma trajetória de oito anos consecutivos de déficit, segundo anúncio feito em janeiro.

Qual o problema? Bem, pelo menos três. Um, mais subjetivo, é que parte substancial desse “superavit” é resultado da chamada “dívida social”. Ou seja, cortes de gastos e contingenciamentos nas áreas sociais, saúde, educação e assistência social.

E dois outros problemas absolutamente objetivos, que se relacionam com a chamada “contabilidade criativa”. Apenas o primeiro praticamente zera o tal superávit: um acúmulo de cerca de R$ 50 bilhões de precatórios não pagos, tornado possível pela chamada PEC dos Precatórios, aprovada pelo governo Bolsonaro. Com isso se permitiu empurrar para o futuro o pagamento de precatórios, que são decididos pela Justiça.

Mas tem mais: uma estimativa de mais de R$ 255 bilhões de restos a pagar (valores que deveriam ter sido pagos em 2022, e passaram para o orçamento de 2023). Mais de R$ 20 bilhões a mais do que no ano anterior.

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Resultados positivos com manobras

Assim, os resultados aparentemente positivos da contabilidade criativa resultam de manobras contábeis. Adiamento do pagamento de precatórios (adiamento de pagamentos). Aumento da conta de “restos a pagar” (mais adiamento de pagamentos, no caso para o governo seguinte). E, além disso, penalização da população mais pobre com cortes de gastos sociais.

Ou seja, para “lustrar” sua reputação com um superávit, e jogar para debaixo do tapete os gastos eleitorais do segundo semestre, a contabilidade oficial de Bolsonaro e Guedes adiou pagamentos que deveriam ter sido efetuados. Assim, “gerou” magicamente um resultado no “azul” – positivo, no jargão contábil.

A herança de números parece ser muito ruim, e esses acontecimentos devem colocar sob olhares bastante atentos as próximas divulgações de números por parte do setor público e do setor privado. Como confiar, em um quadro como este? É fundamental reforçar mecanismos de controle, transparência e publicização das informações. Sob risco de ficarmos totalmente à mercê de que os números na área orçamentária, cambial e financeira virem ficções.


Adhemar S. Mineiro é economista, membro da Coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed-RJ). É doutorando do Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)


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