Desenvolvimento em foco

Pesquisa da Febraban revela que 69% gastam mais do que ganham, ou ‘empatam’

Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB) aponta que 6 em cada 10 consideram que a maneira como cuidam de suas finanças não os permite aproveitar a vida

Pixabay
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A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) divulgou, em julho de 2021, um novo indicador financeiro: o “Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB)”. A pesquisa da Febraban é realizada em cooperação técnica com o Banco Central, instituições financeiras e estudiosos ligados ao mundo acadêmico. Trata-se, segundo a entidade, de “uma ferramenta para diagnóstico da saúde financeira geral das pessoas, bem como de diferentes dimensões que o compõem”. Este artigo traz uma síntese de nota técnica publicada na 18ª Carta do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (disponível aqui).

A pesquisa da Febraban trabalhou com uma amostra de 4.863 entrevistados, de setembro a novembro de 2020. De pontuação entre zero a 100, a média do I-SFB verificada entre os entrevistados foi de 57, com algumas observações: i) 69,4% empatam ou gastam mais do que ganham; ii) 65,7% pensam muito antes de gastar dinheiro; iii) Apenas 21,9% dariam conta de uma alta despesa inesperada; iv) 58,4% afirmam que, de alguma maneira, isso reflete na vida familiar; v) Para 53,5%, compromissos financeiros reduziram o padrão de vida; vi) Apenas 34,1% se sentem capazes de reconhecer um bom investimento; vii) Somente 37,9% conseguem perceber que precisam buscar orientação; viii) 64,7% não têm segurança sobre seu futuro financeiro; e, por fim; ix) 6 em cada 10 consideram que a maneira como cuidam de suas finanças não os permite aproveitar a vida.

O que diz a pesquisa da Febraban

Pesquisas periódicas sobre processos econômicos e sociais do Brasil têm seu mérito, em face de serem escassas as séries estatísticas no País.  Porém, a pesquisa da Febraban parece carecer do devido distanciamento entre levantamento / leitura /análise de dados e os interesses da entidade promotora da pesquisa.

A pesquisa não menciona o universo que a amostra representa: a população brasileira? todos os clientes dos bancos? somente alguns segmentos específicos de clientes capazes de realizar investimentos? Isto em nenhum momento fica bem estabelecido, em que pese o título da pesquisa sugerir que o índice serve para medir as condições financeiras “do brasileiro”. É citado, tão-somente, que os entrevistados são pessoas com mais de 18 anos “que mantém relacionamento com o sistema financeiro nacional”. Existem, porém, milhões de brasileiros e brasileiras que não possuem conta bancária. Estariam estas pessoas excluídas do universo da pesquisa?

A base financeira dos entrevistados é citada na metodologia e mensurada no questionário, porém, não há cruzamento de resultados, a não ser entre a situação financeira e a localização geográfica, gênero e idade. Não se apresenta o índice de saúde financeira por faixa de renda familiar. Uma lacuna grave para um índice que trata da “saúde financeira” do brasileiro.

Cabe também a pergunta: o uso do método da Escala Likert – muito utilizada por equipes de marketing em pesquisas de coleta de opinião – seria o mais adequado para captar a realidade de tema tão sensível à vida da população como a situação financeira individual e familiar?  Tome-se, por exemplo, uma das afirmações que constam do questionário: “Eu sei gerenciar meus gastos” – uma afirmação mexe com a vaidade do (a) respondente. É difícil para qualquer pessoa admitir que gerencie mal seus gastos.


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Pelo indicador, uma pessoa de baixa renda pode ser considerada incapaz de cumprir suas obrigações e tomar decisões; ter pouca disciplina e autocontrole; sentir-se insegura quanto ao futuro e não conseguir fazer escolhas que a permitam aproveitar a vida. Esta pessoa terá uma baixíssima pontuação no seu I-SFB. No entanto, isto garante que esta pessoa seja má gestora de suas finanças pessoais? A educação financeira, neste caso, resolverá o problema na raiz, que reside no baixo patamar da renda da maioria dos brasileiros?

A pesquisa não faz alusão ao contexto social do país para mensurar a “saúde financeira” do brasileiro. Parcela importante da população brasileira depende de projetos sociais para sobreviver como o Programa Bolsa Família, uma renda bem abaixo do salário mínimo. Mesmo quem vive com salário mínimo possui pouca margem para gastos além dos estritamente necessários, como alimentação, medicamentos, roupas, e, em muitos casos, o pagamento de aluguel.

pesquisa febraban

Ademais, há um número expressivo de pessoas desempregadas ou vivendo na informalidade. Some-se a isso, a precarização do trabalho (com impacto na renda), sobretudo desde a Reforma Trabalhista em 2017. Esta população faz parte do conjunto de entrevistados? Tal informação seria importante para, a partir de cruzamento de dados, melhor avaliarmos o resultado da pesquisa. Podemos simplesmente imputar à população, que gasta mais do recebe, uma má gestão ou falta de habilidade financeira ou é necessário fazer uma relação disto com a má distribuição de renda, com os baixos salários, o desemprego e a precarização do trabalho?

Nesse sentido, a pesquisa limita a discussão sobre a “saúde financeira” dos brasileiros a um problema de má gestão (individual) do dinheiro, sem levar em consideração a questão da má distribuição de renda.


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Não há afirmações mais específicas sobre endividamento das pessoas ou sobre as motivações que levaram ao endividamento, ou mesmo quanto aos meios do endividamento – cheque especial, crédito consignado, empréstimo pessoal, agiotagem, entre outros.

Algumas perguntas do questionário não aparecem nos resultados públicos da pesquisa. Por exemplo: “Qual dos produtos e serviços que eu vou ler agora você tem? Conta corrente; financiamento; títulos; previdência etc”.

Diante dos problemas metodológicos citados, os resultados percentuais encontrados parecem não refletir a realidade da “saúde financeira dos brasileiros” em geral. A média de 57 para a população brasileira (numa pontuação até 100) parece elevada em face do que vivenciamos empiricamente e de outros indicadores disponíveis (como índice de pobreza absoluta, inadimplência, entre outros).

O próprio papel das instituições financeiras, como promotoras do superendividamento, não é colocado em nenhuma das afirmações do questionário. As instituições financeiras não são passivas no processo.

Entre os objetivos não explicitados da Febraban com a pesquisa estão:

a) Melhorar a imagem dos bancos.

b) Atender parcialmente à Lei nº 14.181/2021  a “Lei do Superendividamento”, que buscou aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e “dispõe sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”. A Lei, entre outras medidas, promove a inclusão no Código de Defesa ao Consumidor (CDC) do fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores; a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor; e os núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento. Por essa Lei, as empresas que fornecem o crédito tornam-se corresponsáveis pela concessão do crédito.

c) Tirar o foco sobre os elevados spreads bancários e responsabilizar a gestão dos próprios indivíduos e famílias.

d) Mostrar que a saúde financeira dos brasileiros é um problema, mas não tão grande; por conseguinte, há margens para aumentar o crédito individual e familiar (“I- SFB é bom; está em bom patamar”).

e) Estimular a previdência complementar.

f) Reforçar, como “senso comum”, que o problema financeiro do brasileiro não está na “baixa renda” (baixos salários e falta de direitos), mas na inabilidade de gerir o que ganha.

Em que pese o impacto da pandemia do coronavírus na vida financeira das famílias, a crise sanitária sequer foi mencionada na pesquisa, gerando grande surpresa ao ler o questionário e os resultados divulgados.

Quem são os autores

Ana Carolina Tosetti Davanço é graduada em Economia e mestranda em Administração pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Uscs).

Claudio P. Noronha é graduado em Administração de Empresas e pós-graduada em Globalização e Cultura. Mestre e doutor em Ciências da Religião e assessor do Sindicato dos Bancários do ABC.

Jefferson José da Conceição é graduado em Economia pela UFRJ. É mestre em Administração, doutor em Sociologia e assessor da Pró-Reitoria de Graduação e professor da USCS. Coordenador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS (Conjuscs).

Vivian Machado é mestre em Economia Política, técnica do Dieese na Subseção da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT) e colaboradora do Observatório Conjuscs.