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Nunca precisamos tanto de ‘Lavoura Arcaica’

Muito se diz, nesses tempos tão ferozes, que a arte é o único caminho que nos restou para reencontrar a delicadeza e a passagem ao ato – o ato político de reverter o horror que tem condenado o Brasil a uma regressão interminável

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A arte em sua cadeia significante ancestral: do ‘primitivo’ ao infinito, do solitário ao coletivo, dos rituais aos enigmas.

O que nos torna humanos? O que nos significa além da bioquímica dos corpos? O que produz o pensamento, o desejo, a consciência fragmentada, contraditória, que avança sobre o efeito colateral da racionalidade? O que nos devolve à terra, à ancestralidade, ao corpo em movimento, ao sagrado e suas derivações? O que nos transmuta em linguagem e nos permite significar as palavras?  

A resposta em uma só palavra: a arte. 

A arte em sua cadeia significante ancestral: do ‘primitivo’ ao infinito, do solitário ao coletivo, dos rituais aos enigmas. 

A arte, brincadeira dos sentidos, confluência de sons, vertigem das metáforas, espontaneidade dos gestos. A arte, longe do poder econômico, das seduções de classe, dos favores políticos e dos lugares-comuns caros aos monopólios financeiros e sub acadêmicos. 

Longe da domesticação barata. 

Não obstante, há sempre um descompasso latente entre a arte-emanação e seu tempo histórico. A história como ingrediente impregnou a arte com os sentidos da semeadura, afastada da lógica ingênua dos ‘lançamentos’ e ‘estreias’: semeia-se para depois brotar.

Não por acaso, todos os ‘ismos’ históricos reveladores de movimentos estéticos emergiram no terreno do estranhamento para depois virar linguagem. Expressionismo, cubismo, realismo… Todos esses rótulos eram quase um deboche quando seu surgimento reverberou nas pias batismais da crítica. 

Décadas depois, os rótulos virariam chaves reais de acesso ao real da significação estética, nos desdobramentos espontâneos da linguagem e da história que acabam por regularizar a soberba da nomeação obsessiva. 

Lavoura Arcaica habita esse universo estético que desafia o tempo. Permanece inclassificável e indomesticável. Desafia quem se aproxima, desintegra enquadramentos simplistas, abre interlocução perturbadora e permanente com as percepções atentas que se dispõem a explorar suas sobreposições de mundo.

Não atende a modismos, tendências, movimentos. É manifestação direta, emanação corpórea que repele as próprias convenções gramaticais ao tensionar memória e desejo, paixão e reflexão, palavra e tempo. 

Sua força não reside em narcisismos autorais – ela estilhaça a função-autor, atravessada pelo discurso-vertigem de André, que, por sua vez, nos ‘sequestra’ para uma experiência-limite de viver o que ali é vivido –, mas na universalidade dos gestos e na recomposição da experiência de mundo, quase infantil (as formas, as plantas, o alimento, a terra, o cheiro, a luz). 

Lavoura é uma experiência única, um divisor de águas – se se deixar sua brutalidade anticonvencional perfurar nossas bem comportadas expectativas. 

Seu enquadramento histórico e seu entorno fundador – igualmente indomesticáveis – também participam de sua experiência presente: quando publicado por Raduan Nassar, em 1975, o livro incomodou leituras previsíveis e bem comportadas. Assim como o filme, lançado em 2001. 

Eram ambos sementes. 

Foi preciso o tempo para que tais experiências narrativas fossem minimamente absorvidas. Curiosamente, o livro ‘brotou’ pela ação do tempo, mas também pela ação do filme, que nos obrigou a todos a ler e reler a, então, obra-prima de Raduan. O filme de Luiz Fernando Carvalho foi a chuva atrevida – película líquida – que se juntou à terra semeada e raduânica – o texto cravado no papel. 

O universo de Lavoura Arcaica é, portanto, muito maior que o livro e o filme, além de ser os dois: é um universo que compreende as vivências e os desejos que permearam e continuam a permear a existência da obra. 

Não é por acaso que o filme de Luiz Fernando Carvalho, a despeito dos prêmios conquistados mundo afora, também habita o significado de ‘semente’. 

Para a nossa singular felicidade, o ‘brotamento’ deste marco do cinema mundial está diante dos nossos olhos presentes. 20 anos depois de sua chegada às telas do cinema, o filme Lavoura recebeu sua chuva: o Brasil ferido de morte pela sanha neoliberal estruturada em colapso dos sentidos e, portanto, da linguagem. 

Nós nunca precisamos tanto de Lavoura Arcaica. Nosso despedaçamento diante da dor provocada por nossas elites violentas requer um encontro com o despedaçamento de André, com o oratório de uma revolta lírica represada que explode e retorna delicadamente ao âmago das lembranças que nos tornam humanos.  

Muito se diz, nesses tempos tão ferozes, que a arte é o único caminho que nos restou para reencontrar a delicadeza e a passagem ao ato – o ato político de reverter o horror que tem condenado o Brasil a uma regressão interminável. 

A força de Lavoura Arcaica enquanto obra universal – que, no entanto, consagra uma experiência tão brasileira no seio de uma família de imigrantes e sua relação com a língua e com a terra –, é inequívoca. Mais ainda sua força enquanto obra política – que nos retira da mesmice discursiva mantenedora da escravidão leitora e cognitiva. 

É hora de colher os sentidos para ressemear a terra.


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