dignidade em jogo

Educação prisional e garantia de direitos à população carcerária

É preciso discutir o acesso à educação para que a população carcerária possa superar as condições de precarização da vida dentro dos presídios

Wilson Dias / Ag. Brasil
Wilson Dias / Ag. Brasil
População carcerária do Brasil é a terceira maior do mundo: precarização da vida afeta a dignidade humana

Entre os defensores das prisões como ferramenta de solução de conflitos, é comum o discurso de que se trata de um espaço de ressocialização. A dinâmica e os princípios criminais são tão entranhados no senso comum que falta criatividade para pensar em outras saídas mais eficazes para solucionarmos problemáticas, tensionamentos e descumprimentos de acordos sociais. Contudo, se trabalharmos na premissa dos que defendem esse espaço como local de ressocialização, cabe perguntar: tem servido aos propósitos?

Um dos alicerces para esse processo de resgate é a educação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em seu artigo 208, inciso I, estabelece que é dever do Estado o “ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria”. A Lei de Execução Penal (LEP), em seus artigos 17 e 18, estabelece que “a assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado” e que “o ensino de 1o grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa”. Poderíamos, ainda, relembrar o artigo 21, que prevê “estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos”. Mas, vamos à realidade do sistema prisional.

O Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo. Atrás apenas de Estados Unidos e China, chega a cerca de 750 mil pessoas, considerando-se, também, presos do regime aberto e em carceragens da Polícia Civil. Em 2020, pela primeira vez, houve redução da população carcerária: de 709 mil detentos para 682,1 mil [1]. Contudo, o dado ainda não é animador. A superlotação dos presídios é de 54,9% acima da capacidade – são 440,5 mil vagas – e o percentual de presos provisórios subiu para 31,9% do total. Portanto, temos uma proporção de 322 pessoas em situação prisional para cada 100 mil habitantes, quando a média mundial fica em torno de 144 para cada 100 mil.

A pandemia fez escancarar e aprofundar um cenário alarmante: os presídios brasileiros já enfrentavam uma epidemia de tuberculose quando a pandemia da covid-19 eclodiu. E a situação só se agravou desde então. Familiares e organizações de direitos humanos têm sistematicamente denunciado dificuldades, ou total ausência, de informações sobre as condições no presídio, tendo em vista que houve suspensão das visitas. Informações do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura apresentam os entraves para atendimento médico, mesmo quando presos apresentavam sintomas relacionados a covid-19. Ainda segundo informações do Monitor da Violência, cerca de 57 mil presos foram infectados pela covid-19, além de 20 mil servidores do sistema penitenciário.

Desse importante panorama sobre a pandemia, podemos refletir sobre as precariedades às quais são expostas as pessoas em situação prisional. Com enfoque no debate educacional que iniciamos, o cenário não é animador: menos de 13% têm acesso à educação; 8% são analfabetos; 70% não concluíram o ensino fundamental; e menos de 1% tem ensino superior. Ora, se estamos falando de um espaço de ressocialização, como permitimos que pessoas vivam sob a ampliação de precarização de suas vidas, já que fora a falta de acesso a esse princípio basilar de ressocialização, há uma série de outras precariedades impostas, como: superlotação, epidemias de sarna em algumas unidades prisionais do país, falta de esgoto e saneamento básico etc.? Como falar em reconstrução de trajetórias, se direitos básicos como a dignidade são negados?

Os serviços educacionais no sistema prisional são precários e insuficientes, e uma série de dificuldades é imposta no cotidiano dos detentos, as quais inviabilizam possibilidades de participação em processos educacionais. Ou seja, as medidas disciplinadoras e de controle se impõem em relação ao princípio da recuperação e ressocialização. Quando o direito de acesso à educação é garantido, muitas vezes é realizado de maneira insuficiente ou com foco limitador, de uma educação mecanizante, subjugando mais ainda o indivíduo a uma dinâmica autoritária. Ora, seguindo premissas freirianas, a educação implica reflexão, realiza ressignificação da relação com a vida, desenvolve capacidade crítica e criativa, ou seja, é uma prática de liberdade.

A educação no sistema prisional, portanto, deveria, ao menos, constituir rotas correspondentes às necessidades das pessoas, não se limitando ao ensino fundamental e se ampliando ao ensino médio, técnico e superior; deveria estimular a inclusão com respeito à acessibilidade, ao credo, à orientação sexual e a desejos e subjetividades daqueles em situação prisional. A educação, nos moldes de um regime que se pronuncia ressocializador, deveria operar pela abertura de perspectiva, pela reflexão crítica diante da pena cumprida e do papel possível de ser cumprido em sociedade, pelo direito de transformação daquele indivíduo, apoiando familiares e comunidade, apontando, portanto, ao sentido de reintegração, acolhimento e liberdade.

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O que temos visto, contudo, é um espaço que, além de não reduzir o crime, produz reincidência, precarização, isolamento, exclusão e extermínio, tendo em vista que, uma vez egressas, essas pessoas lidarão com o estigma da prisão por toda a vida. Nesse sentido, é preciso discutir acesso à educação não só para quem está “do lado de fora” dos muros prisionais, mas como direito constitucional a ser cumprido e acessado por todos, sem discriminação. Além disso, é preciso que repensemos o papel das prisões em nossa sociedade, apostando mais em penas alternativas, em mediação de conflitos pela via civil, na despenalização das práticas e ações problemáticas humanas e, inclusive e necessariamente, pelo desencarceramento.

Se educar é caminho para libertar, a negação de acesso à educação nas prisões apenas escancara seu papel: recrudescer a segurança, ampliar o Estado Penal e o autoritarismo.


[1]  Levantamento divulgado pelo Monitor da Violência, parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a partir de dados oficiais coletados dos 26 estados e do Distrito Federal.


Juliana Borges é consultora da área de violência do projeto Reconexão Periferias; conselheira da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas; e consultora do Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento e Memória de Combate à Violência da OAB (SP). Autora dos livros Encarceramento em Massa (2019) e Prisões: espelhos de nós (2020).


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