Retrocessos

Educação, espaço de luta e resistência

O Estado deve anos de escolarização ao povo negro, mas as classes dominantes não querem perder privilégios sustentados há séculos pelo suor e sangue de corpos escravizados

Marcello Casal Jr/Arquivo EBC
Marcello Casal Jr/Arquivo EBC
A Casa Grande utiliza dos meios mais frios e descabíveis para impedir que a "minoria" negra goze do direito à educação

A educação no Brasil por muitos anos foi privilégio da elite brasileira. Senhores de engenho faziam questão de mandar seus barões e sinhás moças para estudar fora do país. O acesso à educação para todos, todas e todes sempre foi palco de retrocessos e avanços. É fato que a Casa Grande, que sempre segurou e segura a caneta, resistiu e resiste o quanto pode para que a população em situação de vulnerabilidade social não ingressar no ensino regular, quiçá no ensino superior. Atualmente, a revolta da Casa Grande veio travestida de outras roupagens. Ela utiliza dos meios mais frios e descabíveis para impedir que a “minoria” goze do direito à educação. Prova é a decisão do atual ministro da Educação que, ao condicionar o deferimento de isenção a não ausência a edição anterior do Enem, culminou por afetar mais gravemente os candidatos não brancos. É exemplo de medida aparentemente genérica e abstrata que, na prática, tem destinatário certo e determinado. A edição do Enem 2021 será branca.

A educação, que está sendo conduzida por fascistas, passou a ser mais uma vez alvo de disputas e conflitos de interesses. Ao ponto do aludido ministro dizer sem nenhum constrangimento que “ensino superior deveria ser para poucos”. E arrematar que “estudantes com deficiência atrapalham o aprendizado de outros alunos”.

Nos últimos anos estamos presenciando retrocessos das políticas públicas, congelamento de gastos e perda de direitos humanos que atingem todas as gerações. Não é segredo para nenhum dos Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) que nós, mulheres negras, somos atravessadas por inúmeros marcadores de opressão. Entretanto o que observamos é a política de silêncio fortalecida pelo “pacto narcísico da branquitude”, termo cunhado por Cida Bento.

Sabemos que todas as pedras que estão sendo atiradas em educadores, nas instituições públicas e ou privadas (formais e informais) que produzem conhecimento crítico não são por acaso. Instituições que contribuem com o questionamento da ordem vigente e que desconstroem conhecimentos eurocêntricos e eugenistas fortalecem a resistência dos movimentos sociais e impedem que população sirva de massa de manobra, prejudicando o projeto político de muitos partidos, independentemente de direção (esquerda, direita ou centrão).

A educação da forma como está posta na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nas Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, bem como na Lei 10.639, que alterou as LBD, e em outras normativas, incomoda a minoria que detém o poder (econômico, político e intelectual). Tais normativas jogam luz nos débitos que o Estado tem com a sociedade brasileira no que se refere a uma educação autônoma, libertadora, na qual o indivíduo reflita de forma crítica a respeito de sua vocação humana (Haddad, 2004).

O papel da educação vai muito além da alfabetização. É mister que a escola seja capaz de atuar na socialização do indivíduo de forma crítica, contribuindo para deslegitimar relações de poder que ainda se baseiam e se perpetuam através do método da racialização de indivíduos.

A escola como criação política tem suas raízes no Esclarecimento do século 18 e na sua noção de emancipação pelo conhecimento e pela razão. A ideia de homens emancipados do obscurantismo da religião e guiados pela razão é um ideal de uma sociedade burguesa que via na ciência moderna e na indústria o modelo para o progresso.

E foi assim que a escola foi estruturada, oscilando entre a ideia de emancipação pela razão e disciplinamento pelo controle. Ora lugar de pensamento e criação, ora lugar de vigilância e exclusão (FERREIRA, 2013, p. 01). Escolas públicas e particulares, por anos, promoveram um projeto político e pedagógico eugenista e eurocêntrico, o que contribui até os dias atuais na construção da identidade negativa de pessoas não brancas, herança que nos deixa à margem da divisão de bens materiais e imateriais.

Cobrar o Estado por uma educação que realmente nos contemple nas diversidades biopsicossociais e culturais da humanidade não é tarefa fácil, mas quem nos disse que seria? Afinal foram mais de 300 anos de escravidão, seguidos de uma falsa abolição que nos impediu e impede de ocupar instância de decisão.

O Estado nos deve anos de escola(rização), e tantos outros direitos sociais previstos na Constituição Federal e outros tratados do qual o país é signatário, como por exemplo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que firma a concepção contemporânea de Direitos Humanos, ancorada no tripé universalidade, indivisibilidade e interdependência.

O Estado não paga o que nos deve, pois o neoliberalismo lucra com a escravidão de nossos corpos, e as classes dominantes não querem perder seus privilégios que são sustentados com suor e sangue do povo negro.

Disserta Ferraro:

“A educação é apenas um dentre toda uma série de direitos que integram o conjunto dos direitos sociais, e estes, no contexto da globalização e da ideologia neoliberal, estão em baixa. Assim, a dita dívida educacional é apenas um dos componentes da imensa dívida social acumulada que, por sinal, a ideologia neoliberal não só não reconhece, como tenta sistematicamente desqualificar.”

E preleciona Paulo Freire:

“Seria na verdade uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica” (FREIRE, 1984, p. 89).

Fazendo-se um paralelo com a contribuição de Paulo Freire, fica óbvio que o interesse do Estado sempre foi e ainda é manter as pessoas negras, a população indígena e LGBTQ+ a anos-luz de distância da (re)construção do conhecimento e, principalmente, longe das instâncias de “poder”.

A instituição escola é uma mediadora nesse processo de reflexão, é espaço de (re)construção do conhecimento e de socialização. É espaço privilegiado para discussão de diversidade e pluralidade. A educação está inserida no rol de direitos sociais. Tais direitos têm por objetivo reparar as desigualdades estruturadas pelo nosso histórico escravagista.

Defendermos e internalizarmos nosso papel como defensores da democracia e da justiça social não é tarefa fácil. Mas é imprescindível para que possamos garantir nossos direitos e os direitos das próximas gerações, como rege o princípio da progressividade, ou seja, sem retrocessos.

Sibele Gabriela dos Santos – graduada em Serviço Social pela Unesp de Franca, pós-graduada em Política de Assistência Social-SUAS, pós-graduada em MBA em Administração Pública e Gerência de Cidades, profissional em Neurociência pela PUC-RS, especialista em Africanidades e Cultura Afro-Brasileira.

Artigo originalmente publicado no Portal Geledés


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