Memória

Paulo Freire, em El Salvador: um encontro com um educador popular – Por Vanda Pignato

Ex-primeira dama de El Salvador faz um relato da importância do educador centenário para a educação comunitária na América Latina

Edgar Vasques/Freireando POA/Reprodução/Divulgação
Edgar Vasques/Freireando POA/Reprodução/Divulgação
Ilustração de Edgar Vasques, da coleção de Cartões Pedagógicos produzidos em parceria com Grafar e Freireando Porto Alegre para comemorar o centenário de Paulo Freire

Neste centenário de nascimento de Paulo Freire, um dos pensadores mais importantes do mundo, ando buscando o livro A Pedagogia da Esperança. Trata-se de um livro muito importante, porque nele Paulo Freire relata uma história emocionante que vivi, relacionada com a luta do povo de El Salvador. Para contextualizar esse relato, tenho de contar que minha primeira visita a El Salvador foi histórica para mim. Viajei representando a Comissão de Direitos Humanos da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), então presidida pelo memorável Paulo Sergio Pinheiro.

Na ocasião, participei de uma missão de observadores internacionais em uma campanha de vacinação promovida pelo Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, em territórios sob o controle político e militar da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN). Era o auge da guerra civil, uma das mais sangrentas da América Latina.

Depois dessa viagem, houve muitas outras e vivi muitas experiências, algumas tristes e outras emocionantes. Mas uma que me marcou muito foi a história de um camponês professor de educação popular chamado Juancito. Ele lecionava na comunidade Segundo Montes, um território sob conflito permanente, inclusive com bombardeiros. Ele amava ensinar e sua grande inspiração para trabalhar em condições tão difíceis era seu compromisso, além do amor à educação. Desse modo, seu ídolo era Paulo Freire.

Paulo Freire, uma referência

Durante a guerra civil, que oficialmente começou em 1980 e terminou em 1992, com a assinatura dos acordos de paz, todos os educadores populares salvadorenhos utilizavam os ensinamentos de Paulo Freire.

Juancito nunca havia saído da sua região. Morazán era uma mais afetadas pela guerra, onde os extermínios, desaparecimentos e as ações de esquadrões da morte eram permanentes. Principalmente contra educadores populares e religiosos. O exército considerava a população civil do Departamento de Morazán como “colaboradora” da FMLN.

Em função do trabalho de solidariedade internacional liderado por um grupo de companheiros e companheiras – Aton fon, Mara Luz, Paulo Maldos, Celeste e Ruben Paulucci, Ricardo Gebrim, para citar alguns – foi possível organizar comitês de solidariedade em vários estados brasileiros. Também teve muita importância a parceria com o Cepis (o Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae, da inesquecível Madre Cristina). E, assim, iniciou-se um ciclo de intercâmbio na área de educação popular, entre El Salvador e Brasil. Foi num desses intercâmbios que foi organizada a visita de Juancito. A agenda estava cheia de atividades e visitas a comunidades de base.

Eu não me lembro de quem partiu a ideia de levar Juancito para visitar Paulo Freire e Nita. O fato é que o encontro aconteceu. Estivemos presentes Pedro Pontual e eu, além de Ernesto Zelayandia, que era representante da FMLN no Brasil.

Não posso expressar por meio de palavras a emoção de Juancito quando viu Paulo Freire a sua frente. Pura emoção. Juancito chorou e contou ao seu maestro como ele era conhecido e como era uma fonte de inspiração para muitos educadores de El Salvador.

Paulo Freire: Vou a El Salvador quando acabar a guerra

Foi nesse dia que começamos, muita gente em diferentes momentos, a convencer Paulo Freire a visitar El Salvador. Ele sempre dizia: “Quero ir, mas somente quando terminar a guerra”. E foi justamente no dia 1º de janeiro de 1992 que foram assinados os acordos de paz entre governo e FMLN, levando ao fim o conflito armado. Nesse mesmo dia, liguei para Nita Freire para contar-lhe que a guerra tinha acabado e que era o momento para marcar sua viagem a El Salvador. Paulo Freire imediatamente aceitou o convite.

A parte salvadorenha da organização da viagem era o Comitê Intergremial para Alfabetização (Ciazo). Foi organizada de 2 a 7 de julho de 1992 uma agenda cheia de atividades.

Em 1992, El Salvador ainda vivia momentos de tensão e contava com a presença da Missão de Paz da ONU – Onusal, com significativa participação de militares  brasileiros sob o comando do coronel Romeu Ferreira, muito respeitado e admirado pelos combatentes da FMLN, pelo governo e pela sociedade civil.

Tiveram também participação fundamental na verificação dos acordos de paz na área dos direitos humanos da Onusal, duas brasileiras, mulheres guerreiras: Armenia Nercessian de Oliveira e Leila Lima.

Nessa época, o embaixador do Brasil em El Salvador era Francisco de Lima e Silva, um diplomata de carreira que se destacou brilhantemente durante a fase mais delicada do processo de implementação dos acordos de paz. O embaixador brasileiro não poderia ter sido outro nesse momento histórico que vivia El Salvador. Ao encerrar seu período no país, recebeu diversas homenagens.  Para acompanhar e apoiar Paulo e Nita, nosso embaixador designou o diplomata João Batista da Costa (por quem guardo um grande carinho).


Registro histórico

Quem quiser conhecer todos os detalhes da visita pode ler o livro Paulo Freire em El Salvador, editado pela Ciazo

Capa do livro Paulo Freire em El Salvador e cartaz celebrando visita do educador a Segundo Montes, Departamento de

Essa viagem marcou a vida de Paulo e Nita, pois foi tão grande o impacto para ambos que Paulo decidiu dedicar as últimas páginas do seu maravilhoso livro A Pedagogia da Esperança a sua visita a El Salvador. Paulo ficou tão emocionado que, numa ligação telefônica, me leu o que tinha escrito. E eu, ao ouvi-lo, lendo o texto, chorei de emoção. Neste centenário do nascimento do nosso querido Paulo Freire é importante lembrar o papel e impacto da sua obra na América Central.

Vanda Pignato é advogada, ativista de direitos humanos, ex-primeira-dama de El Salvador ((2009-2020), onde foi ministra de Inclusão Social


Artigos desta seção não necessariamente expressam opinião da RBA

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Reprodução
Cena de chegada de Paulo Freire e Nita a Segundo Montes, Morazán, em 1992

Vanda Pignato e Juca Kfouri no Entre Vistas, da TVT