Status quo

A indiscreta adesão da burguesia ao bolsonarismo

Para parcela da elite econômico-financeira nacional, pouco importa a corrosão institucional contínua do país. Se seus interesses forem contemplados, a democracia formal pode ser rifada sem problemas

Pixabay
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A toada em prol de privatizações e de contrarreformas que resultam na redução do Estado e na abertura de mais espaço para a iniciativa privada vai seguir incólume, a despeito da corrosão institucional contínua

Na sessão da CPI da Covid de quinta-feira (23), um dos fatos que mais chamou a atenção foi a troca de ofensas entre o senador Renan Calheiros (MDB-AL) e o colega de Casa Jorginho Mello (PL-SC). O desentendimento começou quando o relator da comissão associou o presidente Jair Bolsonaro às negociações nebulosas investigadas pelo colegiado, mas tomou outra proporção quando foi mencionado o nome de um empresário. Já mais exaltado, Mello levantou a voz: “Vá lavar a boca para falar do Luciano Hang, um empresário decente, um homem honrado”.

Não é a primeira vez que o parlamentar se entusiasma ao falar de Hang. No depoimento de outra figura do ambiente empresarial, Carlos Wizard, na CPI, ele aproveitou a ocasião para fazer um elogio duplo. “O senhor é um empresário bem-sucedido, querendo devolver para a sociedade um pouquinho daquilo que a sociedade lhe deu – e deu para o Luciano, que é um homem, um empresário de sucesso. É um catarinense, que está lá em Brusque, que nos orgulha muito”, disse o senador, dando graças em seguida: “Ainda bem que nós temos vocês!”

Na denominada Nova Era, iniciada com a ascensão do atual presidente da República ao Planalto, a sutileza não é bem-vinda. Quase tudo é explícito. No dia em que Wizard compareceu ao Senado para quase nada falar, Jorginho Mello não foi o único a adular o empresário. Outros parlamentares se dedicaram a rasgar elogios, simbolizando a sujeição de parte do poder político ao econômico em rede nacional. Mas se as cenas da CPI falam por si, a conjunção de interesses entre parte da classe política e da elite financeira do país também dá as caras em outros contextos.

No programa Conversa com Bial, também na quinta-feira, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, defendeu que “houve uma recuperação da economia em V” (?), graças a medidas tomadas pelo governo federal, segundo ele. Afirmou que as manifestações de 7 de setembro foram “um movimento legítimo”, eximindo ainda o presidente de responsabilidade em relação à condução do governo diante da pandemia. Diante de um questionamento sobre se o famigerado pato amarelo da Fiesp voltaria às ruas para protestar contra o aumento das alíquotas do Operações de Crédito, Câmbio e Seguro (IOF), o dirigente empresarial foi taxativo:

“O pato foi um defensor contra aumento de impostos, essa é a simbologia dele. De repente, virou um símbolo do impeachment, então ele deixou de ter aquela missão e passou a ter caráter político.” Ou seja, o tal artefato só serviu para ajudar a efetivar a derrubada de uma presidenta sem crime de responsabilidade e não vai servir para outro processo de impedimento.

Convém lembrar que a Fiesp é uma entidade acostumada a interferir na cena política, vide a a ameaça do então presidente Mário Amato no segundo turno das primeiras eleições presidenciais da chamada redemocratização, em 1989. À época, disse que se Lula vencesse as eleições, “o número de empresários que fugiriam não seria menor do que 800 mil”. Ele sustentava sua afirmação argumentando que 80 mil empresários haviam saído de Portugal após a Revolução dos Cravos, em 1974. Ironicamente, teriam saído, portanto, após o fim de uma ditadura. Problemas de convivência com um ambiente democrático?

Uma elite que não larga o osso

São diversos os episódios de participação de segmentos da elite econômico-financeira do Brasil na vida política do país afrontando valores democráticos, desde a articulação do golpe que derrubou João Goulart em 1964, passando pelo apoio direto e indireto à ditadura civil-militar, interferências indevidas em processos eleitorais… Agora, o cenário se repete.

Artigos e matérias aludindo aos ricos “abandonando o barco” de Bolsonaro se tornaram frequentes nos últimos meses, muito em função de algumas sinalizações de agentes econômicos demonstrando insatisfação com as repetidas investidas do presidente contra as instituições. Mas, assim como as manchetes que alardeiam a “moderação de tom” do presidente, logo se vê que a realidade é outra. Trata-se de um jogo de cena integrado a um estica-e-puxa que tem como principal objetivo manter tudo como está.

No teatro, os oligopólios de comunicação também são atores fundamentais, não só promovendo a pauta de parte dessa casta (da qual ela faz parte), mas também justificando sua inação relativa à defesa da democracia formal. Nesse sentido, a difusão da ideia de que o impeachment do presidente não teria ainda evoluído por conta de parte da esquerda não o desejar, em função de supostos interesses eleitorais, não só é risível como tem a função de ocultar os verdadeiros responsáveis pela manutenção no poder do atual ocupante do Planalto.

Sem uma candidatura do autodenominado “centro democrático” ou “terceira via” eleitoralmente possível, a aposta de segmentos da elite segue no ultraliberalismo de Paulo Guedes e companhia. Não importa se ele seja pouco eficiente para a economia real ou mesmo para o mercado financeiro, o diagnóstico de alguns analistas é sempre o mesmo: “liberalismo de menos”, mesmo quando a ciência econômica prova o contrário. A toada em prol de privatizações e de contrarreformas que resultam na redução do Estado e na abertura de mais espaço para a iniciativa privada vai seguir incólume, a despeito da corrosão institucional contínua promovida pelos adeptos da Nova Era.

Pesquisas já evidenciam a queda de confiança nas instituições por parte da população. Mas, aparentemente, isso não importa para a “força da grana”, contanto que o ambiente negocial seja facilitado. O caso Prevent Senior, uma operadora bilionária, é emblemático a respeito do que acontece quando existe um conluio entre um governo de plantão e parte da iniciativa privada diante de um Estado enfraquecido e com dificuldades de cumprir seu papel básico de fiscalização e regulação. Há quem feche os olhos, e há os que desejam de fato que seja assim.

O atual governo e a crise institucional pela qual passa o Brasil ao menos puderam evidenciar que para uma parcela significativa da elite econômico-financeira, só existe uma via, de mão única. E que está na contramão dos interesses da sociedade.