Literatura

Em ‘Meus sonetos negros’, Ariovaldo Ramos protesta contra o racismo

“Eu queria ser um indistinguível, Mas não me tratam como ser humano!”, afirma o pastor em seus versos contra o racismo que aflige a população negra no país

Ilustração: Cleber Siquette/Jornal da USP
Ilustração: Cleber Siquette/Jornal da USP

Eu queria ser um indistinguível,
Mas não me tratam como ser humano!
Eu nem sou fidalgo nem sou fulano,
Por vezes quis mesmo ser invisível!

Pois eles só me veem quando querem!
Quando querem, eu quero vê-los cegos.
Me percebo preso por cruéis pregos,
Pois, por tudo, por nada, só me ferem!

Só vim para cá tangido por dor…
Eu fiz foi construir, e sem escolha!
Mas vivem a me mirar com fuzil!

Eu sei ter orgulho de minha cor!
Que sua polícia se recolha!
Meu samba tem meu penhor do Brasil!
*

Eu não sabia como ter idade,
Ter cinco primaveras era pouco!
Minha mãe festejava… muito louco!
Falava de minha felicidade!

Eu, também, não sabia de ser preto!
Eu já sabia de ser bem amado.
Por minha mãe… fora sempre falado!
Nem que cor pode ser cianureto!

Eu sabia que já tinha saudade!
E minha mãe também tinha de mim,
E me levou para mostrar amor!

Mas, a patroa fez uma maldade…
Sem a mãe, chorei… nem tanto assim…
Tudo terminou num elevador!
*

O guarda, seu celular esqueceu,
No banco do seu carro foi largado.
O guarda pensou que fora roubado.
Eis um negro… pronto, enlouqueceu!

É ladrão sim, e do meu celular,
Conclui tal guarda pelo seu saber!
Agiu, fez por saber o que fazer,
Atirou sem ao menos perguntar.

Essa negrada sempre nos faz isso!
A dúvida não lhe incomodou,
Um guarda nunca pode ser omisso!

Esta bala não seria perdida,
Não se faz branco negro que roubou,
E seu celular valia tal vida!
*

Quando Deus veio libertar Jacó,
Exigiu reparação financeira,
Compensação de tanta roubalheira,
Em nome dos que voltaram ao pó!

Findou planos do terrível Egito:
Livrar escravizados era tudo,
Tem de fazer ou sofrer mal agudo…
Se não libertá-los será proscrito!

Oh, que diferença da “redentora”:
Os que traficaram a nossa gente
Receberam oferta sedutora…

Se livram de toda pressão premente
Do império saxão, nação tutora.
E com indenização condizente!
*

Racismo: crime mais e mais filmado…
Quem o comete ficou sem vergonha!
Sim, desinibiu sua peçonha…
Assim, em plena luz, escancarado!

A boca fala do coração cheio:
Pois tanta maldade não mais se cala!
Do jeito de ser que tal mal exala,
Está na branquidade tal veio!

Um branco diz, ao mostrar sua cor:
Preto, disso tem inveja servil!
Um gesto que pede grito de basta!

Isso tem de nos provocar horror!
É marca do racismo no Brasil;
Ignomínia com postura de casta!
*

Em busca da tão cara negritude,
Em África fui ver identidade.
Lá não vi tão nata realidade…
Não são pretos, têm normal atitude!

São povos e com línguas diferentes.
Me venderam a crentes meliantes!
Falo português! O que falei dantes?
Minha pele diz que somos parentes!

Mas minha sina dista brutalmente:
Eles, guerreiros de tez altaneira,
Enfrentaram os inimigos tenazmente!

Eu fazendo destino sem maneira,
E perdido em história sem semente…
A parir negritude brasileira.
*


Ariovaldo Ramos é coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e apresentador do programa Daqui pra Frente, toda quarta, às 20h. na TVT

:: Leia outros artigos de Ariovaldo Ramos ::


Leia também


Últimas notícias