Desenvolvimento em foco

Manutenção identitária dos quilombos. O futuro está na ancestralidade

Defesa da identidade, do bioma e dos povos é fundamental para a construção coletiva do futuro daqueles que foram invisibilizados no processo de formação territorial brasileiro

Ilustração © Thaddeus Coates/Reprodução Geledés
Ilustração © Thaddeus Coates/Reprodução Geledés

O Brasil foi a última colônia europeia a abolir a escravidão, sendo o país de maior imigração africana. Os imigrantes negros reconstituíram sua cultura aqui, como forma de resistência cultural a este processo de aculturamento forçado sofrido na diáspora e, historicamente, não colheram os frutos da sua participação estruturante no sistema colonial. Tratei deste tema na 17ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Conjuscs).

Exemplo da história de resistência são os quilombos, onde a tradição e culturas ainda se mostram latentes, caracterizados pela mistura das matrizes indígenas, africanas e lusitanas. O quilombo se faz presente em cerca de 6 mil ocupações de sítios quilombolas em todo território brasileiro. Estão nas áreas litorâneas, metropolitanas ou na área rural; onde houve um sistema de exploração colonial; em biomas distintos como a Mata Atlântica, no cerrado e na caatinga.

A apropriação do território quilombola varia de acordo com a forma como se desenvolveu as culturas (matriz africana, indígena ou lusitana), da diferenciação dos plantios, dos aspectos físicos do sítio e das origens das áreas de ocupação. Cada territorialidade com sua especificidade e caracterização, diversa de grandes grupos étnicos distintos, nos processos de cura, produção de alimentos, forma de construir, e na diversidade cultural e folclore.

Organização

Conhecer o patrimônio cultural e socioambiental destes territórios quilombolas é fundamental para nos aprofundarmos em nossa própria história, na valorização de nossas riquezas materiais e imateriais, para formatar as políticas públicas, que alcancem efetivamente quem se tornou invisibilizado no processo de formação territorial brasileiro.

O papel da mulher na organização comunitária territorial é peça-chave para entender o quanto dessa tradição secular guarda a memória, a história e a forma de resistência que garantem uma política de segurança alimentar que extrapola os limites territoriais das ocupações quilombolas – na manutenção e cuidado das sementes crioulas. É a mulher quem organiza o quinhão, o terreiro, a colheita familiar, o espaço de plantio, o espaço do forno, do pilão, o espaço das galinhas e a produção de alimentos.

Há diferenciação nas formas de apropriação territorial e no aculturamento de acordo com as proximidades (ou isolamento) das áreas quilombolas às áreas urbanas. A educação, segundo a Lei 10.639, de 09/01/2003 – diretrizes e bases da educação nacional – História e Cultura Afro-Brasileira, é fundamental na manutenção identitária dos Quilombos.


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Seja para respeitar suas territorialidades, na manutenção de nossa riqueza cultural e memória e na construção da sociedade futura – na orientação no material didático, no comprometimento de educadores e na definição da dieta alimentar, tendo em vista que a merenda escolar (adequada à sua cultura), frequentemente é a única refeição de que muitas crianças em situação de risco social dispõem.

Há outros marcos legais na Constituição Federal de 1988, que estabelecem o cuidado com a questão dos povos remanescentes das comunidades dos quilombos e sua territorialidade. São contemplados (pelos artigos 68, 215 e 216): previsão do respeito à tradição, religião, cultura direito à terra; formas de expressão; modos de criar, fazer e viver dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Identidades

O Brasil é signatário da Convenção nº 169, de 07 de junho de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas AINDA não a regulamentou. Por se tratar de uma convenção internacional o governo brasileiro é obrigado a mantê-la, pois ela tem valor constitucional e estabelece, entre outras coisas, parâmetros (e direitos) a povos originários que se “distinguem de outros setores da coletividade nacional”, e que “conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas”. Também diz – e principalmente – que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.”.

Atualmente, há apenas 2.790 sítios quilombolas certificados pela Fundação Palmares, das 6 mil áreas mapeadas no território nacional. Sem a sensibilização da condição identitária de quem vive nas áreas de quilombos, por meio da questão do ensino da história afro-brasileira (com centralidade no currículo escolar) é praticamente impossível dar início aos vários passos para o reconhecimento que dão segurança jurídica à ocupação territorial, que se constitui em várias etapas: autodeclaração, autodefinição, certificação, publicação e registro.


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O processo de autorreconhecimento através do aprendizado da História e Cultura Afro-Brasileira, adequada à realidade de cada territorialidade, garante a manutenção identitária dos quilombos – seus ritmos, seus tempos, conhecimentos que são passados de geração a geração, como curas, ervas, manejo socioambiental etc.

A oralidade de geração para geração é o que assegura a memória coletiva dos quilombos, trazendo aspectos importantes a serem considerados nas formas de o Estado agir com políticas públicas adequadas às especificidades encontradas em cada territorialidade – de saúde, educação, agrícolas, subsídios e benefícios.


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Ausência de políticas públicas

Sem o mapeamento do Censo do IBGE de 2020, a manutenção das territorialidades dos quilombos e de outros territórios de povos originários (indígenas, caiçaras etc.) fica comprometida, impactando diretamente na conservação dos biomas e na conservação de sementes crioulas, que nos dão segurança alimentar e asseguram nossa soberania nesse tema.

O atraso dos processos de titulação (através do usufruto) pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), por exemplo, revela não só a invisibilidade destes territórios e de sua gente, mas também aspectos de preconceito, discriminação e racismo estrutural característicos de nosso infeliz legado colonial.

Além da questão da titulação, é necessário que haja também políticas públicas em prol das comunidades dos quilombos– de trabalho, geração de renda, de fomento à agricultura familiar, de saúde, de educação, de habitação etc. Desta forma, se assegura a manutenção das tradições e a mobilidade social, sobretudo dos mais jovens, para corrigir esse processo de marginalidade territorial revelada nos indicadores de vulnerabilidade social que encontramos, por exemplo, no Vale do Ribeira.

Naquela região se localiza o Quilombo Barra do Turvo Ribeirão Grande/Terra Seca, constituído por diferentes comunidades – Reginaldo, Ribeirão Grande, Terra Seca, Cedro, Pedra Preta e Ilhas –, a 320 quilômetros de São Paulo e a 150 de Curitiba, no município paulista de Barra do Turvo.

Em desenvolvimento

Entendemos que a defesa da identidade, do bioma e dos nossos povos é fundamental para construirmos coletivamente o nosso futuro e é nessa direção que apostamos na discussão da construção de um espaço de USO COMUM que possa fortalecer os laços de solidariedade e de reciprocidade entre as famílias. Um equipamento voltado para educação, esporte, cultura e lazer que propicie à área receber atividades e educação adequada à questão quilombola.

Assim como as excelentes atividades de extensão propostas e realizadas pela Universidade Metodista, nos dispusemos a trabalhar conjuntamente na proposição deste espaço de acolhida no Escritório Modelo ARÁ, da Universidade São Caetano do Sul (USCS). Lá, colaboramos na elaboração de projeto e em oficinas de extensão de vários cursos, que possam surgir da demanda das famílias afetadas pelo processo de projeto e de implantação. O objetivo é que, nesta troca, possamos fortalecer os laços de ajuda mútua, da valorização da memória, dos processos de escuta e da construção do futuro.

Um espaço que integre e articule as atividades existentes e absorva as atividades pretendidas pelos moradores, que fortaleça a identidade, preserve o bioma, nossas origens e…NOSSO FUTURO NA ANCESTRALIDADE.


* Luís Felipe Xavier é professor dos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo da USCS e do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo; da pós-graduação em Arquitetura, Cidade e Sustentabilidade do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e da pós-graduação em Design de Assentamentos Sustentáveis e Ecovilas na Universidade de Taubaté (Unitau). É sócio-diretor da LFX-OBRA e Pesquisador do Observatório Conjuscs


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